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William Fonseca

O LIVRO DIDÁTICO E O ENSINO DE HISTÓRIA: UMA PROPOSTA DE PESQUISA
William Fonseca Freire
Mnt. ProfHistoria UFPA

Refletir sobre a historiografia do ensino de História perpassa obrigatoriamente pelo livro didático, tanto pela centralidade que ocupa em vários contextos quanto pelo interesse de especialistas que procuraram analisar o papel deste material didático ao longo de quase dois séculos de constituição da disciplina história no currículo escolar.
Por isso, esta proposta de pesquisa vincula-se na área do ensino de história, como muitas que tiveram como centro o livro didático, neste caso: pretende-se investigar as narrativas e linguagens das recentes produções didáticas voltadas para o Ensino Médio com foco na maneira como o livro didático retrata a história da Amazônia analisando-o dentro de um processo dinâmico que envolve produção, difusão e recepção do mesmo no espaço escolar.
Segundo o historiador Luís Reznik (2004, p.340): “O livro didático no Brasil, ainda não se livrou de sua sina de ser o guardião da memória nacional, mesmo com toda a profusão de textos, escritos e visuais, de divulgação histórica através da mídia”. Para o autor ainda é forte no imaginário brasileiro a ideia do livro enquanto um suporte necessário para a formação da identidade brasileira, convertendo este material naquilo que o também o historiador Pierre Nora (1993) denominou de lugar de memória, ou seja, o conhecimento histórico transformado em lugar de memória a serviço do Estado- Nação.
Sabemos que o livro didático não é o único responsável por construir uma memória coletiva sobre a “nossa história”, porém, sua narrativa enquanto fio condutor destinado a crianças e jovens interage com as representações destes sujeitos históricos ao se apropriar desta literatura. Neste sentido, resta-nos saber que retratos da região Amazônica e de sua história circulam nestes manuais? E em que momentos desta “grande história nacional” é possível visualizar ou não a presença da história da Amazônia? Como essas narrativas se relacionam com a memória dos alunos do Ensino Médio no processo de formação de uma identidade nacional e regional ao mesmo tempo? São indagações pertinentes.
A escolha do Ensino Médio está ligada com uma outra inquietação na qual estou inserido e também vinculo as questões levantas anteriormente: a partir das minhas experiências docentes noto um espaço reduzido de temas de história da Amazônia nos currículos propostos para este nível de Ensino, uma vez que apesar das mudanças curriculares nos últimos anos, ainda permanece a ideia de um período da educação básica com foco nos exames de ingresso no nível superior; atualmente o Exame Nacional do Ensino Médio - ENEM representa o principal deles e aponta em sua matriz de referência temas de uma “história nacional” com poucas referências à história da Amazônia,  geralmente entendo como um região econômica quando se aborda, por exemplo, o “faustoso ciclo da borracha”.
Esta visão economicista da região Amazônica que transparece nos documentos oficiais norteadores do Ensino de História está relacionada com certa produção historiográfica que influencia a forma de produzir materiais didáticos é o que atesta a historiadora Circe Bittencourt (2008, p.162): “Na produção historiográfica, é possível identificar estudos regionais sobre Amazônia, a região platina e nordestina. Essa produção, majoritariamente, origina-se de uma concepção de região econômica.
É obvio que uma escrita da história do ensino de história não perpassa somente pelas normas prescritas nos documentos oficiais curriculares controladas pelos agentes do Estado, muito menos pelos livros didáticos que precisam se adequar a estas normativas. Pesquisas mais recentes evidenciam a necessidade de analisar as práticas, as apropriações destes materiais por meio da visão dos sujeitos históricos como professores e alunos e outras linguagens que interferem no processo de construção do saber histórico escolar.
Neste sentido, é importante destacar o balanço historiográfico realizado pelo historiador Kazumi Munakata (2012) em O livro didático: alguns temas de pesquisa, pontuando principais produções nesta área nas últimas décadas, o autor analisou em termos quantitativos e qualitativos tais pesquisas evidenciando as principais balizas deste campo investigativo.O historiador cita a pesquisa da Circe Bittencourt como um divisor de águas nestes estudos ao romper com o paradigma que norteou as primeiras análises muito interessadas em denunciar o livro didático como um propagador de ideologia das “classes dominantes” controladoras da indústria cultural.
Essa nova abordagem do livro didático, para Munakata (2012) é tributária da chamada Nova Sociologia da Educação que ao redefinir novas concepções de currículo questionaram a ideia da escola enquanto um receptáculo da transposição didática do saber científico, bem como da chamada História cultural francesa por meio do conceito de representação proposto por Roger Chartier (1993) e Alain Choppin (2000) ao compreender o livro didático como uma ferramenta polifônica, ou seja, com múltiplas funções e sujeito a inúmeras intervenções apropriações e clivagens que denotam diferentes modos de produção e uso deste material. Atentar-se para esta noção de materialidade do livro didático é importante para pensar tanto na forma como o mesmo é produzido e os mecanismos utilizados para sua circulação e eventual uso no espaço escolar
Para esta proposta de pesquisa que tem como objetivo investigar a forma como a história da Amazônia é retratada nos livros didáticos de História é preciso observar o mundo social dos leitores, principalmente dos alunos e da maneira como professores intervém nesse processo.
Desta forma é possível estabelecer um paralelo entre esta abordagem que leva em conta a cultura escolar com os estudos de Jörn Rüsen (2012). O historiador alemão ao propor uma Didática da História, um campo investigativo empírico que aproxima a ciência histórica do saber histórico escolar, constrói o conceito de consciência histórica – uma atividade mental de todos os seres humanos que se forma a partir das carências de orientação do tempo para dar sentido à vida prática, divide-se em quatro (tradicional, exemplar, crítica, genética).
A partir da compreensão de que todos necessitam de uma consciência histórica é possível analisar a dinâmica da aprendizagem em história e a construção de narrativas por parte dos alunos. É a partir desta análise que o pensador alemão tece uma série de considerações necessárias para pensar um livro didático ideal que possibilite ao aluno a construção de uma consciência crítico-genética. Para Rüsen (2012) um dos déficits no campo investigativo do livro didático se dá na pouca atenção na forma como ele é utilizado no espaço escolar e de que maneira o material implica em aprendizagem significativa no Ensino de História.
Após elencar diversos pontos necessários para pensar uma análise do livro didático enquanto um campo empírico significativo no ensino de História, percebe-se que esta proposta de pesquisa apresentada no início deste escopo e ao longo do diálogo com diferentes autores da área se desdobra metodologicamente em duas direções: a) um levantamento de algumas coleções de livros didáticos voltadas para o Ensino Médio que foram aprovadas pelo PNLD, afim de operar uma análise quantitativa e qualitativa observando como a História da Amazônia é representada nestes materiais; b) em um segundo plano verificar que narrativas de história da Amazônia está presente na consciência histórica de alunos do referido nível de ensino da educação básica verificando que correlações é possível estabelecer entre ambos.
Por tanto, foi apresentado ao longo deste texto uma possibilidade de pesquisa em livros didáticos de História, percebendo a necessidade de compreender que retratos de Amazônia é possível observar em tais coleções seja em textos, imagens, mapas e outras representações gráficas que formam uma narrativa sobre a história da região e em que medida isso interfere na formação da identidade amazônica de alunos do Ensino Médio expressos em suas narrativas a partir de suas consciências históricas.

Referências
BITTENCOURT, Circe M. Fernandes. “Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar”. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USP, 1993.
_______________________________, “Livros e materiais didáticos de História. In:_____. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez.2008. pp. 295-324.
________________________________. O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2001.
________________________________. História do Brasil: Identidade Nacional e Ensino de História do Brasil. In: KARNAL, Leandro (org.). História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2010. pp – 163-184.
CHARTIER, Roger. O Mundo como Representação”. Estudos Avançados, n.11, 1991. pp. 173-191.
CHOPPIN, Alain. “Los manuales escolares de ayer ahoy: um ejemplo de Francia. História de La Educación, Madrid, nº 19, 2000, pp 13-37.
MUNAKATA, Kazumi. “O livro didático: alguns temas e pesquisa”. Revista Brasileira de História e Educação. Campinas-SP, v. 12, n.3, set/dez 2012. pp. 179-197.
NORA, Pierre. “Entre Memória e História. A problemática dos lugares”. Projeto História, vol. 10 (JUL-DEZ). São Paulo: 1993. pp. 7-28.
RÜSEN, Jorn. “Didática da História”. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; Martins, Estevão de Rezende (Orgs). Jörn Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2011.
____________. “Experiência, interpretação e orientação: As três dimensões da aprendizagem histórica”. In: __________________, p-p 79-91.
____________. “O livro didático ideal”. In.:__________, p-p 109-127.



13 comentários:

  1. Muito boa sua proposta Professor! Gostaria de instigá-lo a pensar o seguinte: O livro didático é, sem dúvida, um dos elementos que compõem a formação da consciência histórica, sendo assim, no caso da Amazônia, que o Sr. já indica que tem presença reduzida e atrelada apenas à História política/econômica nos manuais, como pensar a formação de uma consciência histórica regional, a partir desse "vazio"?
    Ernesto Padovani Netto

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    1. O estado do Amazonas ou mesmo Manaus recebem os paradidáticos com história específica da região? Sou de Minas Gerais, aqui as escolas recebem paradidáticos com a História de Minas para além da mineração, tais como a história de Belo Horizonte, personagens da região...
      Paula Ricelle de Oliveira

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. No Pará, realidade que conheço, existe uma disciplina de caráter interdisciplinar (História/Geografia) chamada Estudos Amazônicos, os professores das duas disciplinas podem lecioná-la, porém ela só está no currículo do Ensino Fundamental. No Ensino Médio as escolas seguem os conteúdos do ENEM, onde a Amazônia é pouco retratada.
      Ernesto Padovani Netto

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    4. No Pará, realidade que conheço, existe uma disciplina de caráter interdisciplinar (História/Geografia) chamada Estudos Amazônicos, os professores das duas disciplinas podem lecioná-la, porém ela só está no currículo do Ensino Fundamental. No Ensino Médio as escolas seguem os conteúdos do ENEM, onde a Amazônia é pouco retratada.
      Ernesto Padovani Netto

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    5. Entendi Netto Padovani. Obrigada pela informação!
      Paula Ricelle de Oliveira

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    6. Netto muito pertinente a sua indagação, vou tentar respondê-la usando uma ideia que o historiador Jörn Rüsen chama de negociação intersubjetiva ao analisar a questão da aprendizagem em história, ou seja, para a formação de um consciência do tipo crítico-genética a formação do professor é um ponto importante, apesar das "imposições verticais" das relações de poder na educação, ainda é o educador aquele que vai selecionar componentes necessários para o Ensino, o livro didático apesar da sua centralidade é apenas um meio, portanto, para superar esse "vazio" nos manuais talvez uma solução seria a produção de textos didáticos pelo próprio professor, não apenas transpondo o conhecimento acadêmico regional ou reforçando os temas já consagrados por certa ortodoxia historiográfica (colônia, drogas do sertão, escravidão indígena, período pombalino, cabanagem e grandes projetos na Ditadura militar), mas como mediador construindo materiais didáticos alternativos ao livro didático e explorando outros temas vinculados a ideia de região não apenas no seu caráter puramente economicista,estimulando no caso para este nível de ensino um pensamento mais crítico ao estabelecer um jogo de escalas entre o local, regional, nacional e mundial procurando apontar especificidades, diferenças e semelhanças, transformações e outras temporalidades...É um desafio hercúleo, mas temos que "abraçar a causa". Grato pelas suas contribuições! William Fonseca Freire

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  2. Prof. William, parabéns pela sua proposta de pesquisa. Não cabe apontar a necessidade desse tipo de trabalho pois você fez isso muito bem, acrescento o fato de que o PNLD movimenta cifra estratosférica dos cofres públicos e por isso precisa ser analisada em todas as suas dimensões, isso se ainda houver livros didáticos de História após a reforma do ensino médio.
    Aguardando os resultados da sua pesquisa....
    Paula Ricelle de Oliveira

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    1. Obrigado Paula! É verdade vivemos tempos de incertezas...A produção e difusão de livros didáticos no Brasil é algo planetário, somos um dos maiores mercados do mundo, não podemos perder de vista essa dimensão e o fato também da transformação desse bem cultural em uma política pública controlada pelo Estado, o historiador Kazumi Munakata fez um balanço interessante neste setor. É uma historiografia de mudanças e permanências: Tentou-se superar a visão do livro didático como um simples objeto de manipulação da indústria cultural a serviço do capital e do Estado para pensar nas múltiplas intervenções que são feitas neste material em seu processo de produção, como diz o Alain Choppin é um recurso de natureza polifônica precisamos ficar atento a essas inúmeras vozes e principalmente observar a forma como ele é utilizado no espaço escolar. Quanto a Reforma do Ensino Médio, me sinto "pisando em ovos" é preocupante e frustrante também, mas precisamos resistir, temos que pensar enquanto sujeitos históricos alunos e professores tiveram e tem um papel importante nas transformações da educação no Brasil que escapam as determinações da "torre de marfim".

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  3. Olá Prof William Fonseca,

    Gostaria de saber, sua opinião, quais os critérios para a escolha de um livro didático que se encaixe no ensino da História, pois, encontramos muitos anacronismos e vícios em vários livros adotados na rede pública (PNLD).

    FRANCISCO ELÁDIO PEREIRA DA SILVA
    ACADÊMICO DO CURSO DE HISTÓRIA UAB/UECE - POLO DE CAMOCIM

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    1. Olá Francisco!!
      A historiografia do Ensino de História também nos ensina muito sobre mudanças e permanências. A análise do livro didático é um campo de pesquisa considerável nesta área, e as pesquisas mais recentes e até a nossa própria experiência docente nos mostram que muita coisa mudou nas últimas PNLD'S, particularmente eu li o edital da últimas seleções e a cada ano eles são mais rigorosos, tem toda uma avaliação minuciosa das coleções, porém, não é 100% precisa, como bem você falou ainda observamos anacronismos e distorções conceituais, por outro lado muitas coleções já incorporam novas temáticas, abordagens como a história da África, por exemplo, uma maior ênfase na história do Brasil principalmente no Ensino Médio que apresentava um espaço bem reduzido. Por outro lado, temos que observar que livro didático tem uma natureza polifônica, ou seja, entre autores e leitores existe toda uma rede de outros profissionais envolvidos pressões do mercado editorial, adequação as normativas do governo, demandas sociais e ainda tem um outro elemento importante neste processo que é professor e o aluno, legalmente é o primeiro que escolhe a coleção, embora saibamos da existência de práticas informais (brindes, trocas de favores e etc.) entre secretários de educação, representantes de editoras, diretores de escola e até professores que limitam uma escolha consciente e adequada com determinadas realidades escolares, mas quando é possível realizar esta escolha é necessário ao educador observar qual a coleção contempla não apenas o conteúdo programático, mas a sua proposta de trabalho como um todo, observando o manual do professor, as concepções historiográficas e de ensino apresentadas nas obras. Na bibliografia que apresentei na proposta tem um texto muito interessante de um historiador alemão chamado Jörn Rüsen discutindo justamente essa questão: "Qual seria o livro didático ideal?". Para o autor,não só o texto em si é suficiente para um professor analisar, outros elementos são necessários como: mapas, glossário, imagens com créditos e com possibilidades de leitura de fontes históricas diversas, bem como sugestões de diálogos onde seja possível estabelecer a relação passado-presente, não apenas exercícios para fixar a matéria, mas atividades que levem a reflexão do aluno adequada à faixa etária do mesmo.
      William Fonseca Freire
      Mestrando do PROFhistória- UFPA

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    2. Prezado Prof. William, sua resposta foi muita esclarecedora e abriu minha mente sobre os critérios da escolha dos livros didáticos (PNLD.

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  4. Muito bom o texto, parabéns. Gostaria de fazer uma pergunta de ordem metodológica. Quais os cuidados que o pesquisador da história da educação deve ter ao analisar narrativas historiográficas de cunho didático, produzidas no final do XIX e nas primeiras décadas do XX?
    Jeane Carla Oliveira de Melo

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