Rivaldo Amador de Sousa
Dnt. História UFPE
Esta nossa discussão é resultado de um projeto desenvolvido em sala de aula durante o ano de 2015 com alunos da última série do ensino fundamental. A proposta nasceu, como é óbvio, de uma demanda da própria comunidade escolar do município de Lucena – PB, onde, de acordo com o diagnóstico feito pela própria escola, observou-se dois problemas: primeiro, as práticas de violência física e psicológica a maioria de crianças e adolescentes apresentavam sentimentos de inferioridades em relação a sua cor de pela escura. Era perceptível, nessa avaliação geral, uma autonegação, de parte desses educandos, a sua descendência afro.
O diagnóstico, realizado no ano anterior ao período em que se desenvolveu o projeto, se deu por meio de observações, vivências e diálogos em sala de aula e nos recintos da escola. Foram avaliadas diversas práticas e atitudes destes no ambiente interno da escola, especialmente aquelas relacionadas ao preconceito racial e discutido junto à coordenação pedagógicas os problemas sociais das famílias dos educandos fazendo uso do quadro social da realidade das comunidades em que residem essas famílias.
Alguns problemas foram se apresentando ao longo dessas experiências que tivemos com os/as educandos/as, apontando para uma necessidade de renovação urgente na nossa prática docente. Nesse ínterim, algumas questões iniciais se colocaram, constituindo-se numa problemática que demandava resoluções efetivas no campo metodológico. Como seria possível desenvolver um projeto e/ou práticas educativas que ao longo do tempo inferisse nas práticas comportamentais e relacionais dos educandos no espaço escolar, no que concerne as relações etnicorraciais? Que metodologia adotar para incluir nos conteúdos trabalhados em sala de aula o cotidiano dos/as educandos/as, convergindo para uma discussão em torno das questões étnicorraciais? Além dessas, outro questionamento, ainda mais amplo, se apresentou. Então, como trabalhar as questões etnicorraciais no ensino de História, no sentido de que essa prática docente inferisse na construção da identidade afrobrasileira no espaço escolar por parte dos/as discentes?
Esses questionamentos, na verdade, foram os norteadores do trabalho que nos permitiram, de princípio, dialogar com teóricos sobre as questões metodológicas e de ensino de história e aquelas que tratam dos estudos etnicorraciais.
Após todo um estudo que envolveu os entraves, as dificuldades e as possibilidades de realização do trabalho, definimos as turmas e o tempo a serem desenvolvidas as atividades. Selecionamos, portanto, duas turmas do 9º ano. Os materiais didáticos pedagógicos selecionados contemplaram textos escritos (FLORES, 2011; BENJAMIN, 2006; SOUZA, 2006; MUNANGA e GOMES, 2006; CAMPOS, VILHENA e CARNEIRO, 2007), imagens, músicas, filmes e objetos de uso cotidiano (utensílios domésticos). A realização dessa seleção respeitou alguns critérios importantes e elaborados no sentido de permitir trabalhar as questões etnicorraciais no cotidiano dos discentes, consentindo-lhes e possibilitando-lhes o uso das leituras, discussões e reflexões nas suas práticas cotidianas.
Compreendendo e considerando a formação e os saberes conceituais e práticos já adquiridos pelas crianças e adolescentes, foram, de início, trabalhados em sala de aula diferentes conceitos que tratam das relações etnicorraciais tais como: preconceito, ser negro, negritude, violência, identidade, liberdade, democracia, igualdade, equidade, diferença, beleza, ser pessoa, etc. A partir das diferentes leituras realizadas, individual e coletivamente, - principalmente nas leituras audiovisuais e de imagens - os educandos iam produzindo uma ressignificação desses conceitos na inferência de seu cotidiano, na medida em que traziam para a sala de aula narrativas de suas experiências com o mundo vivido. Muitos desses educandos narraram episódios que denunciavam forte carga de preconceito racial vividas por eles. O estudo de tais conceitos permitiram aos educandos perceberem que o conjunto de estereótipos constituídos historicamente como a representação do homem e da mulher negra e suas relações hierárquicas poderiam ser valorizados, reafirmados, negados, desconstruídos, ressignificados, por eles mesmos enquanto práticas sociais significativas no mundo social e relacional.
A constituição de uma consciência crítica em relação ao mundo da diversidade perpassa não apenas pela compreensão da necessidade do direito de ser respeitado, mas, primeiramente, pelo dever de respeitar o outro e o seu espaço. Trata-se de uma enorme complexidade que envolve limites, sensibilidades, experiências etc. Tal ação também perpassa pela ideia de identidade (SILVA, 2000). Essa discussão também se envereda pelo referencial teórico dos estudos que discutem a educação em e para os direitos humanos (CALISSI, 2014).
Partindo das leituras e discussões já realizadas, propusemos aos alunos e alunas uma atividade de pesquisa que consistia numa entrevista com pessoas de pele escura e que habitasse a comunidade local. Para o desenvolvimento dessa atividade foram necessários estudos de técnicas de entrevistas, de gravação e edição de um pequeno vídeo tratando sobre o preconceito racial.
Foram apresentadas etapas a serem seguidas rigorosamente para que o trabalho se efetivasse sem maiores dificuldades. Tais etapas consistia em entrar em contato om pessoas descendente da cor negra e, num segundo momento, tratar da entrevista; em seguida desenvolver um roteiro que norteasse a entrevista; realização da entrevista; edição da entrevista; apresentação de um relatório impresso sobre a experiência, erros e acertos; socialização das entrevistas pelas educandos/as na sala de aula com os colegas; apresentação e exibição das entrevistas à comunidade escolar.
Durante o processo de realização de cada etapa os/as alunos/as faziam aparecer os seus potenciais e seus saberes que consistia, entre acertos e erros, em um processo de ensino aprendizagem onde havia uma troca mutua desses saberes.
As dificuldades não foram poucas, como encontrar a pessoa que concedesse a entrevista e/ou que realizou, mas, por meio de nossa avaliação juntamente com os realizadores, não fora selecionada, e substituída por uma segunda entrevista.
Foram realizadas 11 entrevistas com homens e mulheres negras que, em suas falas, consentiram discutir sobre as dificuldades de “ser negro no Brasil”, lembrando, por meio de suas vivências, a importância da luta contra o racismo. Na maioria dos vídeos produzidos pelos educandos/as, os entrevistados narram experiências que tratam de preconceito racial por que passaram na comunidade local.
Foi na discussão em torno das técnicas de gravação e edição do vídeo, que deveria ser produzido, que esses educandos/as demonstraram a importância do domínio e da socialização de saberes.
Essa experiência nos permitiu compreender a importância da prática na construção de saberes.
Referências
BRASIL. Secretaria de Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais - Volume 8. Apresentação dos Temas Transversais- MEC, 1997.
BENJAMIN, Roberto. A áfrica está em nós: história e cultura afro- brasileira, Volume 1, 2, 3 e 4. João Pessoa: Editora Grafset, 2006
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo, Cortez, 2004.
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o Ensino de História e cultura Afro-Brasileira e Africana. MEC: Brasília, 2005.
CAMPOS, Carmen Lucia. A cor do preconceito. São Paulo: Ática, 2007.
CUNHA JR. Henrique. Identidades negras e educação. Revista CCHLA/João Pessoa, ano 3 N. Especial, nov. 1995.
FLORES, Elio Chaves (Coord) et al. A África está em nós: história e cultura afro-brasileira: africanidades paraibanas. João Pessoa: Grafset, 2011.
FONSECA, Selva Guimarães. Caminhos da História ensinada. Campinas, SP: Papirus, 1993 (Coleção Magistério, Formação e trabalho pedagógico).
MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. Para entender o Negro no Brasil de hoje: história, realidades, problemas e caminhos. São Paulo: Global, Ação Educativa, 2004.
_____.Identidade, cidadania e democracia: algumas reflexões sobre os discursos anti-racistas no Brasil. In: SPINK, Mary Jane Paris (Org.) A cidadania em construção: uma reflexão transdisciplinar. São Paulo: Cortez, 1994, p.177-187.
NETO FREITAS, José Alves de. A transversalidade e a renovação no ensino de história. In: KARNAL, Leandro. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2003.
ROCHA, Solange Pereira da. Gente Negra na Paraíba Oitocentista: população, família e parentesco espiritual. São Paulo: UNESP, 2009.
SILVA, Tomaz (org.) Identidade e diferença – a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis Vozes, 2000.
SOUZA, Marina de Mello e. África e Brasil africano. 2ª Ed. São Paulo: Ática, 2007.
Boa tarde!
ResponderExcluirEu também trabalho com a valorização de identidades negras no ambiente escolar, parabéns pelo seu trabalho, eu gostaria de saber se você percebeu alguma melhora na autoestima dos alunos negros e como isso se apresentou em atitudes?
Olá!
ResponderExcluirBelíssimo o trabalho. Minha pergunta é sobre os resultados dessa pesquisa. Os educandos mostraram que estão valorizando sua identidade negra ao final do trabalho? Pois a sociedade em que vivemos insiste em colocar um padrão (beleza, etiqueta, social...) e que muitas vezes não é o que somos daí a importância de encontrar e construir nossa identidade.
Atenciosamente,
Iolanda Mendes
Boa Noite, Eduardo e Iolanda!
ResponderExcluirPrimeiro, muito obrigado pela leitura do texto!
Como as duas indagações tratam do mesmo questionamento penso que poderei responder a partir de algumas experiências que obtive nessa mesma instituição.
Não é fácil mensurar sensibilidades. Contudo, podemos afirmar que houve mudanças nas atitudes de crianças e adolescentes da escola que vivenciamos essas experiências. Há três anos tentamos realizar, durante o evento “Semana da Consciência Negra” (e que passamos a realizar todo ano) um desfile “Beleza Negra” com o objetivo de permitir aos educandos/as se perceberem enquanto agentes promotores de mudanças, mas as dificuldades em realizar tal façanha eram enormes. As educandas e educandos se negavam a participar, demonstrando desinteresse, vergonha, medo de se expor à comunidade escolar. Observamos que esse medo, essa rejeição traduzia-se pela imposição de um discurso da imagem do negro preconceituoso e estereotipado e que se afirmava nas relações sociais e de poder. Em 2016, após a realização do projeto, objeto dessa discussão, conseguimos convencer as/os educandas/os a participarem de um desfile (em anos anteriores tínhamos fracassado) no qual teríamos o objetivo de explorar a “beleza negra”. Apesar de algumas rejeições obtivemos a inscrição e participação de 18 educandos/as.
Pensando a partir da realidade da escola e do contexto em que está inserida, podemos concluir que a atitude dessas crianças e adolescentes em participar do referido evento acima, enquanto atores principais, foi resultado do trabalho coletivo desenvolvido ao longo desses três últimos anos.
Rivaldo Amador
Olá!
ResponderExcluirInicialmente parabenizo você pela iniciativa nesse trabalho em propiciar aos alunos a percepção de sua participação na sociedade, no mundo em que vivem. Diante dos resultados obtidos com a execução do projeto, no momento do diagnóstico da turma foi detectado que, alguns estudantes passaram por situação de preconceito racial. Muitas pessoas sofrem caladas e tem certa vergonha em se expor. Após a aplicação do projeto, na questão psicológica, tanto das vítimas quanto dos responsáveis pela ação preconceituosa, como foi trabalhada a mente desses alunos no cotidiano escolar?
Aguardo sua resposta.
Olá, Lana Sena!
ResponderExcluirFico feliz pela sua leitura do nosso texto!
Muito obrigado!
Em primeiro momento, os alunos que sofreram tais violências passaram por um acompanhamento psicológico por um especialista, embora em pouco tempo o profissional que desenvolvia esse trabalho fora transferido para outra unidade de ensino e ficamos apenas com o acompanhamento da coordenação pedagógica, dando esse apoio. Em segundo, recebemos visitas de alunos/as que dispuseram relatar para a turma alguma experiência em que foi vítima de racismo e como se sentiu. Em terceiro, houve um momento de visita da turma trabalhada em salas de aulas compartilhando com os colegas da escola o projeto sobre o combate ao racismo e auto estima dos educandos. Com o andamento das atividades as/os alunas/os das turmas trabalhadas tornaram-se combatentes do racismo dentro e fora da escola (os relatos dessas experiências eram comuns em aula quando discutíamos o projeto).
Rivaldo Amador
Obrigada pelo retorno!
ResponderExcluirFico feliz que o projeto atingiu seu objetivo e foi mais além. É tão gratificante quando um trabalho que foi bem pensado, elaborado e executado alcança aquilo que se pretendia.
Parabéns mais uma vez!