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Renata Carvalho

IDENTIDADES INDÍGENAS, O CINEMA E O ENSINO DE HISTÓRIA: REFLEXÕES NECESSÁRIAS AO SABER HISTORIOGRÁFICO
Renata Carvalho Silva
Prof. Mnt. UEMA

O presente texto é parte da proposta de pesquisa que nasce fruto das inquietações gestadas durante a ministração da disciplina Educação Indígena para os alunos do Ensino Superior dos Cursos de História, Letras e Pedagogia acerca das dificuldades de se implementarem, na prática, os estudos e leituras propostas no sentido de repensar a aplicação do ensino da História e Cultura Indígena no ensino básico. As leituras sobre diversidade, multiculturalidade e etnicidade quase sempre esbarravam em uma indagação comum a grande maioria dos alunos: como aplicar na prática, um ensino que privilegiasse a perspectiva dos diferentes grupos indígenas acerca das suas próprias história e cultura sem cair na velha prática da exaltação ao “dia do índio”? Sendo assim, uma das principais motivações em apresentar tal perspectiva de análise reside no desejo de se propor uma sugestão de aplicação de uma metodologia de ensino que fuja dessa armadilha eivada de dogmas e estereótipos. 
A Lei nº 10.693, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes de base da educação nacional, incluindo no currículo oficial da rede ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", foi complementada em 10 março de 2008 com a  Lei Nº 11.645 que além de buscar valorizar os traços e elementos afro-brasileiros constituintes de nossa formação cultural, também almeja sanar dívida semelhante relativa aos povos comumente denominados indígenas.
Esta lei abre espaço para a discussão a respeito das diversas populações indígenas, ponto importante na formação da história e cultura de nosso país, mas que durante um longo espaço de tempo esteve relegada, sendo sempre estudada pela ótica dos chamados vencedores da história, ou seja, entrando de maneira subalterna na escrita da história. Manuela Carneiro da Cunha, antropóloga que busca estudar o elemento indígena por uma ótica diferente, afirma que “a História do Brasil, a canônica, começa invariavelmente pelo ‘descobrimento’. São os ‘descobridores’ que a inauguram e conferem aos gentios uma entrada – de serviço – no grande curso da História” (CUNHA, 2008, p. 08).
Estuda-se, assim, desde então, a trajetória das populações nativas sempre pós 1492, como se antes estes povos não possuíssem história ou qualquer tipo de produção cultural de maior importância de demarcação e memória. Um ponto mais grave é que a representação que encontramos das comunidades indígenas nos livros didáticos e nas escolas é de povos estáticos, que não possuem uma cultura dinâmica, sendo representados por estereótipos e generalizações sempre iguais: cabelos lisos, abundantes adereços de natureza como penas e ossos, moradores das florestas, de culturas exóticas, os corpos nus e pintados, portadores de instrumentos de caça como arco e flecha, ou seja, toda uma construção simbólica tal como se a cultura indígena não tivesse sofrido nenhuma modificação no processo histórico.
Outra representação preocupante que se faz do “índio” na história é como mera vítima do processo de colonização, não se nega a extrema violência a que esses povos foram submetidos no processo e colonização. Violências físicas, como combates diretos e desiguais, doenças, escravidão e etc; e violência simbólica, como mudança no regime de trabalho, estrutura social e religiosa. Essas modificações forçaram uma reconfiguração na cultura indígena, mas isto não implica que estes povos tenham desaparecido, ou não possuam uma reformulação. Janice Theodoro afirma perceber que as culturas indígenas são “viventes” e não “sobreviventes” no processo histórico (1992).
Busca-se através deste projeto analisar o uso das ferramentas metodológicas audiovisuais, em especial as produções cinematográficas, documentárias ou ficcionais, a implementação do ensino da história e cultura indígena, circunscrita à determinação da Lei 11.645/2008, buscando dessa forma fomentar a abordagem da perspectiva intercultural e humanística de valorização da diversidade e da pluralidade cultural e étnica da qual é fruto nossa própria sociedade.
Edson Silva afirma em artigo recente que atualmente estamos inseridos num contexto em que diversos grupos sociais buscam afirmar identidades, conquistar e ocupar espaços sociopolíticos no Brasil. Diferentes expressões socioculturais passaram a ser reconhecidas e respeitadas, o que vem exigindo discussões, formulações e   implementação de  politicas  públicas  que respondam as demandas de direitos sociais específicos. Assim “A Lei 11.645/2008, que determinou a inclusão da história e culturas indígenas nos currículos escolares, possibilitará o respeito aos povos indígenas e o reconhecimento das sociodiversidades no Brasil”. (SILVA, 2005, p.32)
Além de nos levar a repensar o papel das populações indígenas na história do Brasil, a Lei 11.645/2008 vem nos possibilitar repensar a constituição social e política do país.  Segundo Silva (2012) a ideia de uma identidade e cultura nacional esconde inúmeras diferenças sejam de classes sociais, gênero, étnicas e etc. ao buscar uniformizá-las. Negando não só os processos históricos marcados pelas violências de grupos politicamente hegemônicos bem como ainda as violências sobre grupos a exemplo dos povos indígenas e os oriundos da África que foram submetidos a viverem em ambientes coloniais.
Dessa forma, a presente proposta de análise visa discutir a forma como as produções fílmicas vêm, ao longo dos anos construindo diferentes leituras acerca do indivíduo nativo, nas diferentes épocas e sobre diferentes prismas e contextos sócio históricos. Buscamos contribuir com o debate, junto à comunidade escolar, para que se dê base aos professores para uma discussão séria e profunda acerca da reconstrução necessária a respeito dos povos indígenas como agentes sociais do processo histórico, possibilitando o respeito e o reconhecimento das comunidades indígenas, assim como inserir e possibilitar uma visão mais ampla e diversificada sobre questões relativas a construção identitária, gênero, territorialidades e sociabilidades em contextos sócio culturais diferenciados tão caros à uma formação  não só acadêmica e profissional, como principalmente cidadã.
A proposta em se utilizar o uso do cinema como fonte e ferramenta para o ensino de História, ao contrário do que se possa pensar, não se resume à construção de um mero guia de como o professor deva ou não utilizar um determinado filme histórico em sala de aula, uma vez que, como nos alerta Marc Ferro (1988), “os filmes de tipo histórico não são mais que uma representação do passado” que em grande medida falam mais sobre o presente que sobre esse mesmo passado. Nesse sentido é necessário que se leve me consideração a premissa de que este é apenas um dos inúmeros olhares que se possa lançar sobre o passado e o professor deve, então, nesse caso, conscientizar-se sobre as múltiplas significações implícitas a determinada produção cinematográfica quando da sua escolha para que assim possa lhe ser claro o emprego do passado em tal produção.
Nesse sentido, enquanto metodologia de análise para o desenvolvimento do presente trabalho lançaremos mão de categorias de análise como as referentes à semiótica enquanto área de apreciação de toda e qualquer linguagem construída e que busca examinar o contexto de produção dos signos enquanto pertencentes a uma série de códigos em constante transformação procurando desvendar assim os sentidos dos múltiplos tipos de linguagem. Faz-se assim necessário compreender como diferentes signos são construídos no sentido de expressar uma determinada mensagem aplicável a todo e qualquer elemento de uma mensagem (palavra, desenho, som, filme, etc) (PEIRCE, 1995; METZ, 2010).
Ainda enquanto caminho metodológico se fará uso de uma pesquisa bibliográfica qualitativa não só da relação construída entre o Cinema e a constituição da História enquanto disciplina, mas igualmente das mesmas e o processo de ensino aprendizagem tomando como premissa a preparação do professor a lidar com as particularidades da linguagem cinematográfica enquanto objeto reflexivo da própria construção humana ao longo do tempo, ou como afirma a professora Selva Guimarães Fonseca (2009):
O filme pode oferecer pistas, referências do modo de viver, dos valores e costumes de uma determinada época e lugar. É uma fonte que auxilia o desvendar das realidades construídas, as mudanças menos perceptíveis, os detalhes sobre lugares e paisagens, costumes, o cotidiano, as mudanças naturais e os modos de o homem relacionar-se com a natureza em diferentes épocas. [...] Porém, devemos estar atentos à linguagem própria da cinematografia, que não tem compromisso com a historiografia, com a didática da história. Logo, exige de nós uma postura crítica e problematizadora, como em relação às demais fontes históricas. (p. 156-157)
Partindo do pressuposto igualmente escolhemos como objetos e fontes principais da análise que se busca aqui construir, as recentes produções cinematográficas denominadas As Hipermulheres, produção documental de 2011 com roteiro e direção multiétnica assinada por Carlos Fausto, Leonardo Sette e Takumã Kuikuro buscando entrelaçar análises acerca das questões de gênero e sociabilidades na construção das imagens dos povos tradicionais indígenas e o filme O Abraço da Serpente, produção ficcional de 2015 do colombiano Ciro Guerra explorando uma análise acerca da questão da construção das identidades em contato, territorialidades e perspectivismo metafísico na linha das análises de Eduardo Viveiro de Castor, buscando sempre empreender uma contraposição às produções clássicas que tomam o elemento nativo restrito às tradicionais representações binárias do bárbaro primitivo ou do herói idílico nacional.

Referências
CUNHA, Manuela Carneiro da. História dos Índios no Brasil. São Paulo: CIA das Letras, 1998.
FERRO, Marc. O filme, uma contra-análise da sociedade? In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História: novos objetos. Rio de Janeiro: Francisco A1vcs, 1988.
FONSECA, Selva Guimarães. Cinema e Ensino de História. In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, 2009.
METZ, Christian. A Significância no Cinema. São Paulo: Perspectiva, 2010.
PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. 2ª ed., São Paulo: Perspectiva, 1995.
SILVA, Edson. Povos Indígenas no Nordeste: contribuição à reflexão histórica sobre o processo de emergência étnica. In: MNEME – Revista de Humanidades, v.7, nº. 18, out./nov. de 2005.
_____________. Os Povos Indígenas e o ensino: reconhecendo as sociodiversidades nos currículos com a Lei 11.645. In: ROSA, A. BARROS, N. (orgs.). Ensino e Pesquisa na Educação Básica: abordagens teóricas e metodológicas. Recife: EDUFPE, 2012.
THEODORO, Janice. América Barroca: Tema e Variações. São Paulo: Editora da. Universidade de Sao Paulo/Editora Nova Fronteira, 1992.


5 comentários:

  1. Professora Renata em análise a sua pesquisa na utilização do cinema em um recurso didático, promovendo discussões em relação aos indígenas que por um longo período eram considerados homogêneos, sabemos que atualmente existem vários grupos étnicos em nosso país.
    Você percebeu mudanças nos acadêmicos que participaram do projeto?

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    1. Boa noite Lucivaine. Desculpe a demora. Então, a grande maioria deles sempre reclamavam justamente dessa unicidade quanto às falas sobre as identidades étnicas dos povos indígenas. Inclusive qnto à diferenciação que fazemos ao não usar mais o termo "índios" que reafirma essa unicidade, mas sim o termo "indígenas" que mesmo que vago, é capaz de relativizar e ampliar um pouco mais a imensa vastidão da pluralidade étnica desses povos o que os levou a uma reflexão maior acerca de tais possibilidades de análise e aprofundamento do tema. Espero ter ajudado um pouco mais!!
      Renata Carvalho Silva

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    2. Realmente é uma temática que vem ganhando espaço na academia, diante de projetos elaborados por professores como você, percebemos quebras de estereótipos.
      Sou discente do Curso de História, estudei a questão ética no PIBID e está contribuição mudou a minha visão construinda a partir dos livros didáticos. Obrigada Professora Renata.
      Lucivaine Melo da Silva

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  2. Professora Renata em análise a sua pesquisa na utilização do cinema em um recurso didático, promovendo discussões em relação aos indígenas que por um longo período eram considerados homogêneos, sabemos que atualmente existem vários grupos étnicos em nosso país.
    Você percebeu mudanças nos acadêmicos que participaram do projeto?

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  3. Professora Renata, no processo de sua pesquisa você percebeu mudanças aos acadêmicos que participaram do projeto em um novo olhar aos grupos étnicos?

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