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Pâmela Keiti

CLAMOR À HISTORICIDADE DA EDUCAÇÃO: O PROJETO DO FRACASSO E A MEDIDA DO SUCESSO
Pâmela Keiti Baena
UFSCar-Sorocaba

A escola pública, universal e gratuita é um direito garantido pela Constituição da República Federativa do Brasil. Após 1988, o plano nacional de educação passou a ter duração plurianual, visando ao desenvolvimento do ensino e à integração das ações do Poder Público que conduzam à erradicação do analfabetismo, à universalização do atendimento escolar, à melhoria da qualidade do ensino, à formação para o trabalho e à promoção humanística, científica e tecnológica do país. É uma conquista social, resultado de lutas históricas.
Mas ao mesmo tempo em que é um direito, a educação é uma obrigatoriedade para ambos os lados, ou seja, o Estado tem de oferecer escolas e a sociedade tem o dever de matricular e manter nelas crianças e adolescentes. A escola, por sua vez, é uma instituição regida por normas estabelecidas por grupos externos a ela e, no caso da escola pública brasileira, o Poder Público exerce essa função. Tal como as normas que recaem sobre ela, a instituição escola é política, pois existe uma intencionalidade em sua formação e no discurso que a valida, diferindo do seu fazer cotidiano.
(...) as intenções do poder instituído e as da escola não são necessariamente coincidentes. Há clivagens e conflitos inerentes entre o currículo pré-ativo, normativo e escrito pelo poder educacional instituído e o currículo como prática na sala de aula ou currículo interativo (GOODSON, 1991 apud BITTENCOURT, 2013, p.12).

O histórico fracasso premeditado
Espaço de conflitos e tensões, enquanto se exalta as questões relacionadas à qualidade do ensino, ocorre a desconsideração das implicações políticas. Ao longo da História, o fracasso escolar foi sendo colocado como culpa do professor, do método pedagógico, da família e mesmo da própria criança. O conceito de fracasso escolar surgiu no Brasil nas décadas de 1970/80, durante o período de redemocratização pós-Regime Militar, momento histórico reconhecido pelo “sucateamento” do ensino (LIBÂNEO, 2003; SOUZA, 1998).
As condições socioeconômicas estão intimamente ligadas à estrutura e à organização do ensino. Durante a década de 1980, iniciava-se uma tendência neoconservadora, hoje já instalada. No entanto, o setor do trabalho sofreu alterações por conta dos avanços tecnológicos. É exigida da escola, então, a formação de profissionais qualificados. A aprendizagem não é neutra: vem acompanhada da disciplina para preparar a mão-de-obra, mas também auxilia o temido acesso ao conhecimento, que pode incentivar o pensar independente (LIBÂNEO, 2003).
Modelo de educação adotado pelo Brasil, a pedagogia francesa da virada do século XIX para o XX tinha uma intenção que não admitia a possibilidade do “fracasso escolar”. O mesmo “liberalismo revolucionário” que pregava a universalização da escola pregava também a segregação pela seleção pelo mérito e demérito, servindo como uma divisão de classes e causando tensão, mas não o questionamento da escola e sua função. A proposta da escola primária era tornar todos cidadãos. No entanto, para o Estado, a função da escola era acentuar as diferenças e transformá-las em diferenças de classes (SOUZA, 1998).
No Brasil do mesmo período, a discussão da escolarização esteve ligada à política da democracia, com intenção de aumentar o número de alfabetizados para acrescer o de votantes. Porém a educação encontrou limites, não se expandindo nem consolidando, sendo usados os modelos estrangeiros que garantiam a dominação da elite tradicional a partir da contenção de planos educativos “indesejáveis”, ou seja, qualquer forma de educação emancipatória. De acordo com Souza (1998), o fracasso escolar foi premeditado, determinado antes mesmo da construção de escolas. O intuito era de que a população interiorizasse o sentimento de inferioridade para se manter sob controle.
Anunciar o fracasso escolar e não oferecer escolas, tratar a população como inapta e não oferecer empregos, como itinerante e não oferecer terras, sem dúvida tornou-se doravante um mecanismo eficaz de internalizar a desvaloração (SOUZA, 1998, p.67).
Por volta de 1920, o objetivo não era mais produzir cidadãos, mas sim trabalhadores capacitados para as indústrias e lavouras, tarefas para as quais a massa populacional brasileira também não era considerada apta. O conhecimento escolar continuou sendo negado à população pois, nas mãos do povo, poderia ser ameaçador. Surgiram a tecnificação do ensino e os diversos tipos de testes de capacidade e de orientação profissional. O trabalho escolar passou a ser racionalizado, como o trabalho fabril.
Posteriormente, com o passar das décadas e em meio a embates políticos, o Brasil avançou na universalização do ensino fundamental e houve significativa queda na taxa de analfabetismo. Entretanto, outras formas de fracasso escolar surgiram, como a evasão e a repetência. A democratização da escola criou diferenças mais profundas entre o ensino público e o privado e a qualidade perdeu importância frente à preocupação com gastos. A competição se acentuou. A educação, privada e pública, foi incorporada e serve ao sistema capitalista. A felicidade e o sucesso relacionaram-se ao rendimento de lucros. Logo, o fracasso escolar continua à espreita.

A mensuração do suposto sucesso
Mas o que é o sucesso escolar? “A satisfação escolar tem nome e sobrenome: boas notas” (MARQUES, 2015, p.2). A noção de sucesso é deturpada: o ensino escolar reduziu-se à busca da aprovação do sistema educacional através de avaliações externas, como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), e a qualidade na educação passou ao domínio das estatísticas.
Para verificar o desenvolvimento educacional, são utilizadas formas avaliativas em todo o território. De acordo com a portaria nº 931, presente no Diário Oficial da União de 21 de março de 2005, o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) é dividido em dois processos: a Avaliação Nacional da Educação Básica (ANEB) e a Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC). Como informa o texto do §1º:
a) a ANEB tem como objetivo principal avaliar a qualidade, eqüidade e a eficiência da educação brasileira;
b) caracteriza-se por ser uma avaliação por amostragem, de larga escala, externa aos sistemas de ensino público e particular, de periodicidade bianual;
c) utiliza procedimentos metodológicos formais e científicos para coletar e sistematizar dados e produzir informações sobre o desempenho dos alunos do Ensino Fundamental e Médio, assim como sobre as condições intra e extraescolares que incidem sobre o processo de ensino e aprendizagem;
d) as informações produzidas pela ANEB fornecerão subsídios para a formulação de políticas públicas educacionais, com vistas à melhoria da qualidade da educação, e buscarão comparabilidade entre anos e entre séries escolares, permitindo, assim, a construção de séries históricas;
e) as informações produzidas pela ANEB não serão utilizadas para identificar escolas, turmas, alunos, professores e diretores; (2005).
Desta forma, percebe-se que essa “avaliação por amostragem” é feita através de procedimentos quantitativos que visam medir a qualidade educacional, através dos resultados obtidos de avaliações compostas por questões objetivas. O papel proposto à avaliação é verificar o desempenho dos estudantes para repensar as formas de ensino e aprendizagem e reelaborar as futuras práticas educacionais em uma educação mais eficaz, aperfeiçoando os mecanismos de ensino no cotidiano e adaptando às necessidades e prioridades da realidade escolar. Ou seja, os objetivos com os quais os processos avaliativos se apresentam intencionam mensurar para melhorar.
Percebe-se no texto uma tendência a homogeneizar a educação e, consequentemente, os alunos pertencentes às séries avaliadas, ao se mencionar a equidade como um dos fatores a serem avaliados e ao mesmo tempo aplicar em todo o país, em meio a todos os contextos, uma avaliação que demanda resultados objetivos, dentro das chamadas habilidades e competências pré-definidas.
Contudo, o que se está avaliando não são “meios”, mas “fins”. O próprio processo avaliativo esclarece que seus interesses são por resultados. Assim, a avaliação “torna-se peça central nos mecanismos de controle, que se deslocam dos processos para os produtos, transferindo-se o mecanismo de controle das estruturas intermediárias para a ponta, via testagens sistêmicas” (SOUZA; OLIVEIRA, 2003, p.2).

Considerações abertas
Tem-se, então, a real finalidade da avaliação como mecanismo de controle do sistema educacional, inserido em uma lógica de governo neoliberal, onde os valores meritocráticos são superestimados. Os resultados são ordenados em um ranking e a competição característica do sistema econômico avança no educacional, estimulando a competitividade entre estados, cidades, escolas, alunos e professores, que é reforçada por sistemas de recompensa e punição – uma devolutiva àqueles que foram avaliados bem ao estilo do condicionamento behaviorista proposto por Skinner.
Os processos avaliativos, por mais científicos que se autodenominem, já que também a ciência não é livre de interesses, e por mais objetividade que pretendam atingir, estão carregados de ideologia, aglomerando os ideais neoliberais com os mecanismos de controle foucaultianos em um sistema educacional cujo objetivo final, que é falhar, está sendo bem cumprido (SOUZA, 1998).
Cabe enfatizar a necessidade de historicizar o ensino no Brasil, produzir a compreensão histórica de que as questões pertinentes aos chamados “retrocessos” na educação básica não são novidade dos atuais processos, mas são parte de um projeto político em andamento desde a fundação da primeira escola. O desafio da História e daqueles que a lecionam vai além do ensino em sala de aula: tem o dever de não permitir que a sociedade relegue ao esquecimento aqueles que vieram antes e não deixar que se ocultem na névoa do presentismo os processos iniciados no passado.

Referências
BRASIL. Portaria nº 931, de 21 de março de 2005. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 22 mar. 2005. Seção 1, p. 17. Disponível em: <https://goo.gl/9xZvxs>. Acesso em: 05 mar. 2017.
BITTENCOURT, Circe. Capitalismo e cidadania nas atuais propostas curriculares de história. In: BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 12. ed. São Paulo: Contexto, 2013.
LIBÂNEO, J. C.; OLIVEIRA, J. F.; TOSCHI, M. Elementos para uma análise crítico-compreensiva das políticas educacionais: aspectos sociopolíticos e históricos. In: ______. Educação escolar: políticas, estrutura e organização. São Paulo: Cortez, 2003. p. 129-149.
MARQUES, Roberto. BNCC, geografia e docentes de geografia. In: ENCONTRO DO GT DE EDUCAÇÃO DA AGB-RIO E AGB-NITERÓI DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO, Out./2015, Rio de Janeiro. Disponível em: <http://goo.gl/degRq5>. Acesso em: 27 abr. 2016.
SOUZA, Maria Cristina Cortez Christiano de. À sombra do fracasso escolar. A psicologia e as práticas pedagógicas, Estilos da Clínica, vol. 3 n. 5, São Paulo: 1998, p. 63-83. Disponível em: <https://goo.gl/65XOwg>. Acesso em: 17 mai. 2016.
SOUZA, Sandra Zákia Lian de; OLIVEIRA, Romualdo Portela de. Políticas de avaliação da educação e quase mercado no Brasil. Educação e Sociedade, Campinas, v. 24, n. 84, set. 2003. Disponível em: <https://goo.gl/WZ0LxM>. Acesso em: 05 mar. 2017.



Um comentário:

  1. Olá, Pâmela!
    Boa noite!
    Gostei muito da forma como você delineou o seu artigo, achei-o muito coerente e indagador.
    Bem, como você bem pontuou em "o histórico fracasso premeditado", a história da educação e do ensino no Brasil, é uma história de cópias mal feitas, de um tentar fazer caber no molde apertado das experiências de outros países. Como você vê o novo projeto de educação que escolheram para nós?
    Obrigada!

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