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Nathalia Hermann; Vitor Gasparetto

O QUE É SER BRASILEIRO? A CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL BRASILEIRA NO XIX A PARTIR DE UMA AULA OFICINA
Nathalia Hermann
Vitor Gasparetto
UDESC

O presente texto se propõe a analisar uma aula oficina realizada a turma do 8ºano da Escola de Educação Básica Municipal Henrique Veras em Florianópolis. A aula oficina, na perspectiva da historiadora portuguesa Isabel Barca, se constrói a partir da ideia de que os estudantes são os próprios agentes do seu conhecimento. Esse mesmo conhecimento é proporcionado através de indagações feitas pelo professor por meio de atividades intelectualmente desafiadoras, como por exemplo a análise de documentos (2004). O professor é peça chave do processo de construção da aula oficina e segundo Isabel Barca o mesmo
Terá que assumir-se como investigador social, aprender a interpretar o mundo conceptual dos seus alunos não para de imediato classificar em certo/errado, completo/incompleto, mas para que esta sua compreensão o ajude a modificar positivamente a conceptualização dos alunos.  (BARCA, 2004, p. 133) 
O objetivo da oficina analisada era trazer questões sobre identidade, nação e o passado presente na consciência histórica de cada aluno e discutir como essas narrativas foram construídas. A consciência histórica, segundo o teórico alemão Jörn Rüsen, pode ser definida como uma categoria que se relaciona a toda forma de pensamento histórico, através do qual os sujeitos possuem a experiência do passado e o interpretam como história. Em outras palavras ela é “(...) a suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (RUSEN, 2010, p. 57).
 Durante o planejamento da aula oficina a mesma foi pensada para ser realizada em três momentos: Dois debates e uma análise de documentos. Os debates, que ocorreram no início e final da oficina, serviriam para trazer a tona quais são os conhecimentos já existentes na mente dos alunos e alunas. A turma tinha acabado de estudar sobre os processos de vinda da corte real portuguesa em 1808 e a independência do Brasil e, apesar dos alunos terem aprendido sobre um suposto “projeto de nação” construído na época, queríamos mostrar as permanências desse mito no nosso discurso e como nos identificamos com o ser “Brasileiro”. Nessas discussões buscamos a opinião dos alunos sobre eles “se considerarem brasileiros” e o que tornaria alguém brasileiro, lendo a visão deles sobre identidade.
A análise em sala foi realizada com base em documentos adaptados que buscavam narrar sobre uma “pluralidade” de identidades que existiam no Brasil do século XIX. Cada um desses documentos tratava de um grupo étnico-social (Negros em de origem Malê, Grupos Indígenas, Açorianos, Alemães e Portugueses da corte real) e a turma foi separada em quatro grupos para examiná-los. Junto com as fontes uma série de questões serviram como guia para a análise dos trechos. O questionário trazia perguntas sobre as características do documento (“quando ele foi escrito?”, “quem escreveu?”, “sobre quem fala?”) bem como indagações em aberto sobre a identidade desses personagens históricos, buscando a interpretação e a opinião pessoal dos alunos e alunas (“Você acha que essas pessoas eram brasileiras? Porque?”). Essas questões serviram como base para um segundo debate com os alunos, que deveriam discutir sobre ser brasileiro agora e no século XIX utilizando-se desses exemplos.
De 1831 a 1840 o Brasil vivia o Período Regencial, não havia um imperador de fato e várias províncias abrigavam movimentos separatistas. Por isso, a unidade do Estado Imperial estava ameaçada e a História surge como um elemento capaz de construir uma identidade nacional “aglutinadora”. A partir dessa necessidade é criado o IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro), que surgiu com o objetivo de ajudar a elaborar uma narrativa sobre o passado nacional que valorizasse os feitos políticos ligados à monarquia portuguesa e construía os mitos fundadores que sustentariam a idéia de nação brasileira. Uma produção historiográfica que, segundo o historiador Manoel Guimarães “escapa às regras e injunções específicas do mundo acadêmico” (GUIMARÃES, p.9, 1988)
Deste lado do Atlântico outro será o espaço da produção historiográfica. Não o espaço sujeito à competição acadêmica própria das universidades européias, mas o espaço da academia de escolhidos e eleitos a partir de relações sociais, nos moldes das academias ilustradas que conheceram seu auge na Europa nos fins do século XVII e no século XVIII.  (GUIMARÃES, 1988, p. 5) 
Essa é uma narrativa que apesar de já apresentar o “mito das três raças”, colocava o elemento europeu como encabeçador de um processo civilizador. Essa era uma narrativa que também tentava diminuir os contrastes regionais, pois os elementos regionais eram vistos como fragmentadores dessa identidade nacional. Apesar de hoje em dia, no discurso dos alunos, encontrarmos muito elementos de narrativas locais (como, por exemplo, a figura dos açorianos, muito presentes na tradição florianopolitana e por consequência na própria tradição da escola), a construção narrativa de uma “mistura” entre elementos europeus, negros e indígenas, que se iniciou no século XIX e depois se tornou o “mito da democracia racial” continua sendo o elemento central na discussão dos alunos ao se referenciar a “ser brasileiro”.
Não se pode esquecer que a democracia racial foi criada para fundamentar uma homogeneização cultural e omitir as diferenças e desigualdades sociais e serviu para fortalecer a ideia de uma história nacional com a ausência de conflitos entre os povos. Com a oficina e a análise dos documentos os alunos aparentam ter notado as intencionalidades de certos grupos ao se escrever as narrativas clássicas sobre identidade brasileira bem como os conflitos entre diferentes grupos e identidades, que apareciam muito fortemente nesse Brasil do século XIX.

Referências
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In. BARCA, I. (Org.) Para uma educação de qualidade: Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga, Centro de Investigação em Educação (CIED)/ Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2004, p. 131 – 144.
GUIMARÃES, Manoel Luis Lima Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro e o projeto de uma história nacional. Revista Estudos Históricos, v. 1, n. 1, 1988, p. 5-27.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: fundamentos da ciência histórica. 1ª reimpressão. Brasília: Editora UNB, 2010.

12 comentários:

  1. Bom dia,

    Abordagem interessante em apresentar aos alunos as intenções que podem estar por trás da narrativa histórica, não só o Brasil usou a História como um instrumento de se construir uma nação mas Alemanha e Itália se utilizaram também para criarem uma nação.

    Saudações.

    Alberto Ferreira e Souza.

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    2. Oi Alberto, boa tarde

      Obrigada pelo comentário! A oficina foi uma atividade realizada como uma atividade do PIBID História da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) e sempre procuramos trazer para a sala de aula oficinas com temáticas que o professor titular não conseguiu trabalhar ou aprofundar em sala para provocar discussões e debates.

      Att,
      Nathália Hermann

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  3. Olá,
    Parabéns pelo projeto. Em relação a documentação histórica qual foi a reação desses alunos, de ensino fundamental, ao depararem-se com uma fonte possível de ser interpretada pelos próprios?
    Atenciosamente
    Edilaine Oliveira Santos

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    1. Boa tarde, Edilaine

      Nosso objetivo era colocar os alunos em contato com fontes da época para eles entenderem um pouco o trabalho do historiador.O processo de interpretação das fontes foi um pouco complicado porque os alunos não eram acostumados com uma linguagem mais formal e por isso os trechos eram pequenos e quando necessário adaptados. Colocamos algumas perguntas que eles deveriam responder (que estão descritas no texto) para facilitar o contato dos estudantes com as fontes e no fim da atividade, após responderem o questionário e depois do debate, grande parte da sala conseguiu compreender as fontes e alcançamos nossos objetivos.

      Att,
      Nathália Hermann

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    3. Olá, os alunos tiveram certa dificuldade para trazer suas próprias interpretações das fontes, ainda mais pois estavam acostumados a um processo escolar de "copiar e colar" do livro didático, então o processo investigativo foi um pouco assustador para eles em um primeiro momento.

      Durante a investigação das fontes nós trouxemos algumas perguntas "guia" (de quando é esse documento? quem escreve ele? ele fala sobre quem?) assim como perguntas de cunho mais interpretativo-opinativo (você acha que essas pessoas se consideravam brasileiras? você consideraria elas brasileiras?) e estávamos junto com eles para responderem eventuais duvidas.

      Att.
      Vitor Gasparetto

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  4. Elaine Cristine Luz Santos de Moura5 de abril de 2017 às 05:48

    Gostaria de parabenizá-los pelo trabalho. O estudo sobre construções de identidades é importantíssimo. É gratificante saber que existem ensinamentos sobre isso nas escolas, e que esse conteúdo não está se limitando nas universidades. Aproveito o ensejo para indicar leituras como Stuart Hall em seu texto que trata sobre identidades e o livro de Lilia Schwarz sobre o complexo de Zé Carioca, ambos são essenciais para a compreensão da identidade, sobretudo a brasileira.
    Minha indagação é referente aos recursos utilizados em sala de aula. Foram utilizadas imagens? Datashow? Indico Também apresentar aos alunos a imagem "Redenção de Cam", ajudaria muito em compreender o mito das três raças.
    Desejo sucesso!

    Cordiais saudações,

    Elaine Cristine Luz Santos de Moura

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    1. Olá Elaine, o nosso objetivo era fomentar a discussão com os alunos e trazer para eles um trabalho de investigação histórica, então utilizamos documentos de época que tratavam de diferentes grupos étnicos, junto com algumas perguntas para guiar a invesigação dos alunos a respeito da construção de identidades e intencionalidade dos autores, assim como perguntas para entendermos a opinião do estudante sobre o assunto. Os documentos eram textuais e imagéticas, você pode acessa-los pelos links abaixo.

      https://docs.google.com/document/d/1FdYKNnht6Mz_3ztlodtwu0sgR6JXvhXsIOh6zRGc72A/edit
      https://docs.google.com/document/d/18uW6KvgMMSYsg5gscSJEcdXYvV0xP9gNtYuo1sWNN80/edit
      https://docs.google.com/document/d/1CVBTpsQlR6VJM6lSX0SV6V_DIGu-34-xovB9BZZxdcw/edit
      https://docs.google.com/document/d/1SLvvkdGU2O7brITp89RxXdZ7F_hNPViSP6K-emrD9UM/edit

      Foram quatro documentos para quatro grupos, cada um sobre um grupo étnico distinto (imigrantes alemães, a corte portuguêsa, negros escravizados e grupos indigenas)

      Nos focamos mais em fontes do século 19 pois era o assunto que os alunos estavam tratando em aula, tentamos tratar dessa primeira construção de uma identidade brasileira que se utilizava do IHGB e pessoas como Varhgagen e Von Martius e que construiram uma gênese da identidade nacional, apesar de esse assunto ter sido tratado de forma bastante superficial devido à idade dos alunos. Conseguimos ter um dialogo interessante nesse contraste com o que determina a identidade contemporânea (os alunos tinham trazido bastante simbolos "cliche" como futebol e samba) com essa construção de época.

      Vitor Gasparetto da Silveira

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  5. Interessante esse trabalho sobre a nacionalidade. Após esse debate os alunos construíram uma nova concepção sobre o "ser" brasileiro ou eles apenas perceberam os documentos como meios para a construção de uma nacionalidade?

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    1. Olá Simélia, antes da oficina com as fontes nós haviamos realizado um debate com os alunos exatamente para entendermos qual era a concepção anterior de "ser brasileiro" que eles tinham construido. Com perguntas do tipo "você se considera brasileiro?" "O que torna alguem brasileiro?"
      "Acha que ser brasileiro é sempre igual?" os alunos produziram uma série de simbolos "clichê" e que eles mesmo tinham dificuldades de se encaixar. (um aluno por exemplo, proferiu a frase "brasileiro gosta de futebol, mas eu não gosto de futebol e sou brasileiro também")

      Com o segundo debate que fizemos após essa discussão com as fontes, o assunto tratado pelos alunos parece ter sido exatamente essa diferença entre a identidade construida no século 19 com a idéia de "brasileiro" contemporânea que eles tinham, acredito que o que eles mais aprenderam na oficina foi sobre a questão de como essas identidades foram construidas com intencionalidades e com base em preconceitos e o fato de que essas idéias vão mudando ao longo do tempo.

      Att.
      Vitor Gasparetto

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