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Luiza Hooper

IMAGINÁRIOS SOBRE O TERMO ESCRAVIDÃO: A VISÃO DE ALUNOS RECÉM-FORMADOS NO ENSINO MÉDIO, ALGUMAS NOTAS
Mnt. Luiza Hooper Moretti
UNB

Este texto é fruto do Trabalho de Conclusão de Curso de Especialização apresentado ao final do curso Especialização em Educação em e para os Direitos Humanos, no contexto da Diversidade Cultural da Universidade de Brasília, em 2015. O foco da pesquisa era mostrar o imaginário de alguns alunos recém-formados no Ensino Médio sobre a Escravidão Negra Moderna.
Visto que existiram situações de subjugação de uma população ou um grupo de pessoas, fizemos um recorte mais preciso, nos referindo aos negros africanos escravizados ainda em seu continente a partir do século XVI, traficados por portugueses e outras nações europeias, trazidos para as Américas para trabalhar em grandes plantações ou minas, ou até mesmo em trabalhos domésticos e citadinos.
É dessa época a ideia de uma “raça” negra, utilizada para “criar um esquema mundial de classificação” (NASCIMENTO & DELMONDEZ, 2014) de pessoas. Esse esquema foi fundante da mentalidade de nossos políticos e se estende até hoje em dia, podendo ser visto em diversas situações, incluindo situações segregacionistas, com negros sempre abaixo de outros grupos – como no caso das favelas, estudado por Nopes (2012). E também é visível no mito da democracia racial que perpassa nossa sociedade e é muitas vezes usado para invisibilizar a luta dos negros por espaços e reconhecimento. Como afirma Da Matta (1986), “quando acreditamos que o Brasil foi feito de negros, brancos e índios, estamos aceitando sem muita crítica a ideia de que esses contingentes humanos se encontraram de modo espontâneo, numa espécie de carnaval social e biológico.” (DA MATTA, 1986, p. 31).
Dentre os objetivos de nossa pesquisa final, apresentamos aqui o primeiro: (1) Identificar os elementos constitutivos do imaginário dos alunos sobre o termo escravidão em vários momentos da história, e especificamente a escravidão moderna. A pesquisa foi estruturada em oficinas, que nos possibilitaram um conteúdo mais dinâmico, completo e complexo sobre as diversas dimensões da cultura e história dos negros em nossa sociedade.
Foram 4 encontros, onde discutimos o que o tema e a palavra escravidão remetiam, em forma de desenho (encontro 1), os pontos positivos e negativos da escravidão, com uma conversa informal e livre entre os participantes (encontro 2), uma discussão que trazia esses pontos positivos e negativos mais a fundo e para a sociedade atual, com questões como preconceito (que estava nos pontos negativos) e diversidade cultural (que estava nos pontos positivos) (encontro 3) e, por fim, uma tentativa de imersão nessa realidade, onde os alunos foram convidados a escrever uma carta sobre a escravidão negra moderna. Os resultados foram muito variados e apresentaremos a seguir algumas conclusões, que nos interessam nesse texto.

Resultados da Oficina
Com relação às representações do termo escravidão, foi possível percebermos que, ademais as diferenças de pensamento de cada um, quando pedimos que os alunos representem figurativamente o que está em suas mentes sobre o tema, em sua maioria eles lembram e colocam no papel várias situações muitas vezes disconexas entre si (mesmo que todas tenham fundo verossímil). Um dos alunos representou apenas a escravidão negra moderna, e ao fazer isso, cada elemento que desenhou tinha uma conexão com o seguinte e com o anterior. Os outros tentaram retratar a escravidão de forma genérica, passando por vários momentos da história, mas acabaram deixando os desenhos soltos, sem conexão entre si.
Constatamos que os elementos clássicos da escravidão moderna, que é a que mais afetou o Brasil, estão presentes inclusive quando eles tentam representar a escravidão em outros momentos. A historiadora Isabel Castro-Henriques (2006) faz um bom resumo das diversas pesquisas e teorias, encabeçadas por Claude Meillasoux, sobre o termo escravidão: ele se torna “vulgar” por ser utilizado para vários momentos históricos específicos que, na realidade, são caracterizados por práticas diversas e não análogas.
Ao pedir que os alunos separassem as “coisas boas” e “coisas ruins” da escravidão, eles já conseguiram delimitar o espaço-tempo do qual falavam: eles se referiam às positividades e negatividades da escravidão negra moderna. Podemos tirar disso duas conclusões. A primeira se refere ao espaço-mundo em que vivem tais alunos, que por estarem mais próximos dos acontecimentos desse modelo de escravidão, possuem mais elementos e segurança para tratar disso do que para tratar a escravidão de forma mais genérica, percebendo sua existência para além desse recorte espaço-temporal.
Uma [outra] conclusão que se segue é que o tema escravidão é ainda pouco trabalhado dentro dos ambientes educacionais de forma a especificar sua existência no curso da história. Mesmo se adaptando melhor à análise da escravidão negra moderna, encaixando-a dentro das categorias “bom” e “ruim”, os alunos não a fazem de forma mais profunda, apresentando justificativa para o fato de os pontos escolhidos serem bons ou ruins. Faltando aprofundamento nessa análise dos porquês, os alunos acabam por repetir, por vezes, ditos populares superficiais e ideologicamente direcionados, como o fato de a escravidão ter sido boa por causa das técnicas agrícolas que foram desenvolvidas ou do crescimento econômico proporcionado.
Tal análise aprofundada, que percebemos que os alunos não fazem a priori, foi trabalhada no terceiro encontro. Não questionamos a capacidade dos alunos de pensar autonomamente tais justificativas, mas sim o fato de que eles não possuem o costume de fazer esta análise naturalmente, e precisam ser incitados a fazê-la, papel que deveria ser do professor e da escola e que possivelmente não foi na experiência escolar desses jovens.
Compreendemos os alunos como indivíduos que tem sua experiência socio-cultural e histórica como formativa dos conhecimentos prévios que eles trazem para nossa oficina. O período escravista do Brasil se insere claramente nessa perspectiva. Nossa ideia foi mostrar caminhos novos para se pensar a escravidão.
O nosso terceiro encontro foi exemplo disso. Trabalhamos os elementos bons e ruins do encontro anterior sob a perspectiva de “para quem” eles foram/são bons ou ruins. Trabalhamos também quais as consequências deles nos dias atuais em nossa sociedade. Com isso, pudemos elevar o conhecimento crítico dos alunos mostrando que falar de escravidão não se resume a uma palavra ou uma situação histórica passada inquestionável. Trata-se de falar de uma situação passada que tem características próprias e que deve ser analisada em todas as suas camadas.
Elementos para se pensar a história da escravidão sob perspectiva humana e não econômica foram chave para a compreensão dos participantes. Os alunos colocaram, por exemplo, a diversidade cultural como ponto positivo, mas não viam isso como uma característica fundamental da dinâmica da escravidão no Brasil. Foi apresentado que a música trazida da África, tocada por grupos escravos nas senzalas, era muitas vezes usada como código para dizer aos que fugiam se os capatazes os estavam procurando.
Assim, mostramos que elementos que contituem a identidade dos homens e a sua vida em sociedade devem passar pelos seres humanos que as formam e dão sentido, e não pela máquina de organização da produção e economia. Assim, elementos como enriquecimento do senhor ou novas tecnicas agrícolas passam pela exploração da mão de obra, que envolve grande violência e desumanização.
Falamos também, como exemplo da dimensão humana da escravidão, da questão da raça. Raça foi um elemento tão chave para a organização das sociedades ocidentais coloniais, e principalmente dos Estados Unidos da América (colônias do sul) e do Brasil, que na Europa vários estudiosos e escolas científicas buscaram comprovar a relação entre cor da pele e capacidades humanas, cognitivas e/ou físicas, a fim de justificar o rebaixamento de uns perante outros. A escravidão foi, então, uma situação histórica movida por interesses econômicos, mas que buscou justificativas biológicas e políticas para se validar.
Falar de raça é abrir espaço automático para se falar de racismo. A relação entre racismo e escravidão foi feita pelos alunos de forma direta e sem maiores obstáculos. Porém, apesar de ninguém ter professado ideias do tipo “não existe racismo no Brasil”, os alunos externalizaram dificuldades de compreender o racismo como experiência cotidiana no Brasil hoje, pois “há negros no poder”.
Utilizamos matérias de jornais e revistas sobre vários momentos de preconceito ocorridos em nossa sociedade e que apresentavam dados sobre a população negra no Brasil como recurso didático. Com isso, os alunos puderam ter exemplos concretos da existência ainda atual do preconceito, e que, apesar da representatividade ser importante (um negro em cargo de poder, por exemplo, ou uma mulher negra influente), ela não diminui o racismo direcionado diariamente aos negros.
Para concluir, ficamos felizes em conseguir atingir nosso objetivo de compreender como os alunos pensam a escravidão após sair da escola básica. Pudemos perceber algumas dificuldades que eles têm em relacionar vários pontos diferentes constitutivos do período e termo histórico trabalhado. Tivemos espaço para fazer uma ponte entre as diversas características da escravidão, relacionando-as entre si e com a realidade em que vivemos hoje. Assim os alunos puderam formar uma imagem mais complexa desse momento histórico, conectando elementos que antes eles viam em esferas disconexas. Por fim, percebemos ainda que o conteúdo que os alunos trazem das aprendizagens do Ensino Médio é ainda bem raso e desconexo com a realidade, não sendo impossível conectá-los, mas não tendo, também, sido feito nos momentos oportunos anteriores de sala de aula e de estudo.

Referências Bibliográficas
CASTRO-HENRIQUES, Isabel. Reflexões sobre o “escravo” Africano. In: O pássaro de mel: estudos de história africana. Lisboa: Colibri, 2006.
DAMATTA, Roberto. O que faz o brasil, Brasil?. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.
MORETTI, Luiza H. Imaginários dobre a escravidão negra moderna: a visão de alunos recém-formados no Ensino Médio. Monografia de especialização. Universidade de Brasília, Instituto de Psicologia, 2015.
NASCIMENTO, Wanderson Flor do. DELMONDEZ, Polianne. Sujeitos da diversidade e suas vulnerabilidades. In: Curso de Pós-Graduação em Educação em e para os Direitos Humanos no Contexto da Diversidade Cultural. (Módulo II). Brasília: UnB/SECADI/MEC, 2014.
NOPES, Adriane. Os “outros” por baixo dos “outros”: o caso das “favelas” no Brasil. Oficina nº 393 do Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra, Coimbra, Portugal. Novembro de 2012.


3 comentários:

  1. Olá. Parabéns pela temática abordada e o público que direcionou sua pesquisa. Fiquei curioso em saber mais sobre as caraterísticas econômicas e sociais dos jovens que colaboraram com sua pesquisa, pois em alguns nichos da sociedade, questões de racismo e discriminação são vivenciadas cotidianamente, especialmente contra jovens negros e pobres. Qual a leitura que você percebeu que estes jovens têm de suas práticas e se elas carregam preconceitos étnicos?
    Obrigado.
    Zilfran Varela Fontenele

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  2. Luiza Hooper Moretti4 de abril de 2017 às 08:44

    Oi, Zilfran! Obrigada pelo comentário :)
    Bem, respondendo sua primeira pergunta, vale ressaltar que os alunos participantes provinha de regiões diferentes do país. Dois dos estudantes vinham de famílias mais abastada, eram brancos e da região sudeste do país; os outros vinham de famílias em dificuldades financeiras medias ou graves, eram negros, da região nordeste e um da centro-oeste. Daí já conseguimos ver bem (apesar de ser um grupo pequeno) o nicho social do qual você comentou, com certas características de raça e classe bem determinadas.
    Sobre seu segundo questionamento, eu percebi que com esse exercício os alunos passaram a levar mais a sério o tema racismo, inclusive de forma mais crítica quando ele aparecia em discussões diversas, ou tentavam trazê-lo em momentos posteriores. Percebi que os alunos brancos tinham mais dificuldades de perceber o racismo como estrutural no Brasil, principalmente por causa de ideias como "existem negros ricos" ou "existem presidentes negros", mas no decorrer da oficina eles demonstraram compreender a importância da representatividade e a realidade do espaço atual do negro na nossa sociedade (ainda marginalizado e tudo mais). Já os alunos negros demonstraram ter mais "consciência" da existência prática do racismo, mas um deles pareceu, no início, bem incomodado em externalizar essa realidade (e ele era de uma família de uma cidade bem pobre do interior do nordeste, e eu acho que isso faz diferença), mas na carta feita no ultimo encontro da oficina foi o que demonstrou mais intimidade com o tema.
    Espero ter respondido :)

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