Páginas

Luis Filipe Bantim

OS INDÍCIOS DE EURÍPIDES E A HISTÓRIA DE ESPARTA – ALTERNATIVAS DE ENSINO E PESQUISA
Prof. Dnt. Luis Filipe Bantim de Assumpção
LHIA/ATRIVM – UFRJ

Ao dialogarmos com o arcabouço conceitual da Análise do Discurso Francesa, verificamos que todo discurso é dotado de uma intencionalidade específica que lida com os interesses de seu locutor, mas também se encontra sujeita ao lugar que este ocupa em sociedade. Por isso, a percepção de que um discurso não lida obrigatoriamente com a verdade ao criar uma lógica particular do mundo ao qual se remete, ressalta que toda manifestação discursiva promove uma representação do objeto que analisa. Mediante esse breve comentário iremos discorrer sobre a maneira como o discurso poético do ateniense Eurípides contribui para a produção da História de Esparta.
A singularidade do corpus documental de Eurípides reside na maneira como o poeta denunciou os excessos da Guerra do Peloponeso através do teatro e da adequação das narrativas míticas. Joyce Salisbury afirmou que, no caso de Eurípides, os mitos ancestrais articulavam práticas sociais que nem sempre foram representadascomo socialmente evidentes (SALISBURY, 2001, p. 66). Raffaele Cantarella corrobora com Salisbury ao destacar que a ação inerente a tragédia transfigurava a dramaticidade da vida por meio da arte. Nesse caso, seria por intermédio dos mitos tradicionais que a tragédia realçaria os acontecimentos de um dado contexto histórico ao permitir que os espectadores se identificassem com a encenação do “passado imemorial” de sua pólis (CANTARELLA, 1971, p.177).
Endossamos Salisbury e Cantarella com os apontamentos de Peter Burian. Segundo o pesquisador a tragédia manipula a tradição e os mitos – bem como as suas convenções genéricas – objetivando construir redes elaboradas de similitudes e diferenças capazes de transmitir aquilo que o poeta almeja. Essa exposição/adaptação das narrativas míticas forçaria ou deslocaria a atenção dos espectadores por confirmar, alterar ou desmoronar a sua expectativa no interior do teatro. Entretanto, Burian adverte que a revisão do discurso mítico ocorreria conforme a circunstância e dentro de limites aceitos, uma vez que os mitos eram históricos (BURIAN, 2003, p. 178-180). As considerações de Salisbury, Cantarella e Burian nos remete a outro contexto da Análise do Discurso, isto é, a intertextualidade.
Em suas peças Eurípides se utiliza, amplamente, de um dispositivo que modernamente identificamos como intertextualidade, sendo esta uma propriedade constitutiva de todo texto e do conjunto de relações – explícitas e implícitas – que mantém com outros escritos. A intertextualidade emerge da relação de vozes, consciências e discursos, sugerindo novas orientações e/ou significados a uma obra (MAINGUENEAU, 2014, p. 288-289). Afirmamos que intertextualidade adotada por Eurípides – com ênfase aos mitos narrados por Homero e que integravam o “passado imemorial” dos atenienses do Período Clássico – almejava exprimir os acontecimentos contemporâneos através da tradição oral e literária. Também destacamos que o poeta ateniense exprimiu os seus anseios e críticas acerca da Guerra do Peloponeso através do teatro e da adaptação dos mitos, ou seja, mediante a intertextualidade.
Em virtude da proposta não poderemos nos alongar em demasia, por isso selecionamos como estudo de caso uma análise de O Cíclope. Ainda que esta peça não tenha sido identificada como uma tragédia, e sim como um drama-satírico, a mesma integra o corpus documental de um poeta e tragediógrafo de suma importância para a literatura clássica. Do mesmo modo, o discurso e a representação que Eurípides faz de Esparta nesta obra corresponde aos nossos objetivos com este texto.
Raffaele Cantarella propôs que O Ciclope tenha sido encenado por volta de 422 a.C., ano no qual os comandantes Cleon de Atenas e Brásidas de Esparta tombaram em combate (CANTARELLA, 1971, p. 288). Nesse momento os ânimos estavam tensos entre as póleis beligerantes e somente em 421 a.C. que a “Paz de Nícias” seria estabelecida. Com isso, o momento no qual O Ciclope fora apresentado se mostrava favorável para uma crítica ateniense feita a sociedade de Esparta. Destacamos que O Ciclopefornece indícios para se investigar as questões políticas, sociais e étnicas no contexto da Guerra do Peloponeso. A caracterização do ambiente geográfico em que residia o ciclope Polifemo poderia ser uma alusão à localização de Esparta no interior da Lacedemônia, bem como das atividades econômicas desta pólis. Seguindo essa perspectiva o comportamento de Polifemo poderia representarcomo os esparciatas e os lacedemônios eram vistos por uma parcela dos atenienses, ou seja, rústicos e de atitudes “bárbaras”, além de estarem geograficamente isolados de outras regiões da Hélade. Se comparada a Atenas, Esparta seria uma pólis rudimentar por não ter conseguido se aprimorar tal como os homens da Ática – como consta na “Oração Fúnebre de Péricles” na obra de Tucídides.
Entretanto, o trecho que nos interessa para perceber a representação que o discurso de Eurípides promoveu sobre a mulher espartana é relativamente curto, pois situa-se entre os versos 175 e 186. Nesta conjuntura, Eurípides narra a chegada de Odisseu e seus companheiros a ilha de Polifemo, que logo se deparam com a caverna do ciclope. Ali, o rei de Ítaca se encontra com o velho Sileno e os seus filhos, os quais foram feitos prisioneiros de Polifemo. Nesse processo de apresentações mútuas, o coro de sátiros começa a indagar Odisseu sobre as suas aventuras, possivelmente no intuito de ratificar a identidade do herói. Com isso, o coro questiona:
Coro: Você capturou Tróia e tomou Helena como sua prisioneira?
Odisseu: Sim, e nós saqueamos toda a propriedade dos priâmidas.
Coro: E após capturarem a jovem [Helena], todos vocês, um a um a curraram, haja vista o prazer que ela sentia tendo mais de um homem? Traidora! Bastou ver “calças” coloridas sobre as pernas de um homem e um colar de ouro ao redor do pescoço que logo perdeu a cabeça e abandonou o pobrezinho do Menelau (O Ciclope, vv. 175-186 – grifo nosso).
Aqui verificamos um exemplo da intertextualidade de Eurípides, que ao tomar o discurso mítico da chegada de Odisseu e sua tripulação a ilha de Polifemo acabou inserindo elementos particulares ao mesmo sem que o cerne do poema homérico fosse deixado de lado e/ou perdesse as suas principais características. Apesar disso, essas transformações que Eurípides emprega no drama pretendia corresponder ao estilo literário e artístico desta peça, mas também aos seus objetivos políticos enquanto um cidadão ateniense em plena a Guerra do Peloponeso. Outro aspecto que enfatizamos está atrelado à datação aproximada da encenação desta peça, pois, se esta foi desempenhada em 422 a.C. – um ano antes do estabelecimento da “Paz de Nícias” – seria justificável a maneira ofensiva como os costumes espartanos foram representados, seja na figura de Polifemo ou na caracterização de Helena.
Observamos que o discurso de Eurípides representouHelena como uma mulher sem comedimento sexual, adúltera e sedenta por luxo e riqueza. Como comentou Ellen Millender (1999, p.360), em inúmeras de suas peças Eurípides tentou destacar a falta de moralidade e comedimento das mulheres de Esparta era um reflexo das deturpações de toda a sociedade lacedemônia. Por meio desse artifício discursivo Eurípides estaria tomando Esparta como o contraponto do modelo ideal de mulher e de pólis. Ao proceder dessa maneira, o tragediógrafo estaria apresentado para o seu público no interior do teatro justificativas plausíveis para a continuidade da Guerra do Peloponeso, uma vez que esta estaria sendo realizada contra homens “bárbaros”, ainda que helenos. Essa postura também acabaria endossando a superioridade da pólis de Atenas diante da Hélade e legitimaria a autoridade que vinha exercendo nas Cíclades e na Jônia.
Sendo assim, concluímos que o discurso de Eurípides se utilizou da intertextualidade proveniente de toda uma tradição mítica presente na literatura e na oralidade para permitir que os seus interlocutores identificassem as representações presentes nas encenações teatrais. No caso d’O Ciclopeverificamos que a rusticidade de Polifemo poderia ser uma alusão aos valores e as práticas culturais de Esparta que, durante a Guerra do Peloponeso, rivalizou com os interesses de Atenas. Logo, representaros espartanos como pessoas rústicas validaria a ideia de uma “superioridade” ateniense, a qual justificaria o conflito por uma questão de princípios. Quanto ao comentário sobre a conduta sexual de Helena, o poeta teria ampliado a conotação de barbaridade dos costumes de Esparta, onde as mulheres eram descomedidas e se entregavam ao sexo com outros homens além do seu esposo. Essa impressão que o discurso de Eurípides edificou de Esparta acabaria por disforizara cultura desta pólis, além de assegurar aos atenienses um lugar de destaque junto a Hélade e aos helenos que lhes forneceria o “direito” e o “dever” de promover o seu “império marítimo” no Egeu. Por fim, Eurípides nos fornece parâmetros para repensar as representações tradicionais de Esparta e entender as motivações pelas quais estas foram desenvolvidas, o que torna a investigação rica e instigante para quem a realiza e para aqueles que dela se beneficiam.

Documentação Literária
EURIPIDES. Electra, Orestes, Iphigeneia in Taurica, Andromache, Cyclops. Trans.: Arthur Way. London: William Heinemann, 1929.
EURÍPIDES. Tragedias. Vol. I. Trad.: Alberto Medina González; Juan Antonio López Férez. Madrid: Editorial Gredos, 1983.
BURIAN, Peter. Myth into muthos: the shaping of tragic plot. In: EASTERLING, P.E. (Ed.). The Cambridge Companion to Greek Tragedy. Cambridge: Cambridge University Press, 2003

Referências Bibliográficas
CANTARELLA, Raffaele.  La Literatura Griega Clasica. Trad.: Antonio Camarero. Buenos Aires: Editorial Losada, 1971.
MILLENDER, Ellen. Athenian Ideology and the empowered Spartan woman. In: HODKINSON, Stephen; POWELL, Anton (Ed.). Sparta – New Perspectives. Swansea: The Classical Press of Wales, 1999.
POOLE, William. Euripides and Sparta. In: POWELL, Anton; HODKINSON, Stephen (Ed.). The Shadow of Sparta. London: Routledge, 1994.
SALISBURY, Joyce. Encyclopedia of women in the Ancient World. Santa Barbara: ABC-Clio, 2001.


4 comentários:

  1. Estimado Professor Luis Filipe, o texto é bem interessante e importante para repensarmos o papel de Esparta no currículo de História Antiga. Gostaria de perguntar sobre qual autor da análise do discurso que o senhor utilizou para embasar suas concepções.

    ResponderExcluir
  2. Estimado Kadu,agradeço a sua pergunto e fico feliz em afirmar que venho utilizando os pressupostos teórico-metodológicos de Dominique Maingueneau.
    Cordialmente,
    Prof. Luis Filipe Bantim de Assumpção

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Carlos Eduardo da Costa Campos6 de abril de 2017 às 15:32

      Estimado Prof. Luis Filipe,
      houve muitas críticas para o senhor, por utilizar um teórico moderno para o Mundo Antigo? Os primitivistas parecem condenar tais empregos, saliento que também discordo dessa visão purista de Antiguidade deles.

      Excluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.