CAMÉLIA BRANCA: O PROCESSO DE ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO EM SALA DE AULA
Mr. Livia Claro Pires
A presente sequência didática foi desenvolvida junto a alunos e alunas do 7º ano do segundo segmento do Ensino Fundamental, na disciplina de História, em colégio particular da Zona Norte do Rio de Janeiro, no ano de 2015. Nasceu de uma inquietação da professora ao perceber que os estudantes sempre representavam a população negra que vivia no Brasil no século XIX como escravizados.
Por ser um colégio de pequeno porte, oferece apenas o Ensino Fundamental, possuindo poucas turmas com número reduzido de estudantes. A escola localiza-se em Engenho da Rainha, próximo às comunidades da Pedreira e do Complexo do Alemão, atendendo a famílias de classe média baixa residentes no entorno.
O reconhecimento que esses estudantes detinham de seu pertencimento étnico esbarrava na negação em ser negro. Percebia-se, com clareza, essa negação. Quando perguntados, em ocasiões diversas, sobre como se autodeclaravam, poucos afirmavam serem negros ou negras. Declaravam-se como brancos ou morenos. Os colegas que eram identificados socialmente como brancos, por sua vez, reforçavam essa negação.
Apesar de já terem sido introduzidos em discussões sobre racismo, na sala de aula, percebiam este como um problema individual, uma falha de caráter, um desvio moral. Não compreendiam o racismo como um problema social endógeno. Tal entendimento refletia-se, muitas vezes, na maneira como entendiam o conteúdo ministrado na disciplina.
Negros e negras na história brasileira eram vistos por esses alunos e alunas apenas como mão de obra escravizada. Ao serem apresentados ao Segundo Reinado, era como “escravos” que se referiam à população afrodescendente da época. Não percebiam outras formas de existência social desses grupos para além da escravização, e, dessa forma, naturalizavam a desigualdade contra negros e negras nessa sociedade, no passado e no presente, e, sobretudo, entendiam esses indivíduos como agentes passivos. Desta percepção, o plano de aula sobre o processo de abolição da escravidão no país foi pensado para desconstruir esse entendimento.
A primeira etapa consistiu em apresentar outra interpretação acerca do papel dessa parcela população na sociedade. Para isso, foi apresentado o poema “Sou Negro”, de Solano Trindade. Após introdução a respeito do autor, sua biografia e contexto político-social, a turma foi instada a discutir os versos, a partir de algumas indagações feitas pela docente: qual o período da história do Brasil retratado pelo poeta? Qual a visão acerca do homem e da mulher negra: positiva ou negativa? Eles tinham um papel ativo ou passivo naquela sociedade? Aceitavam passivamente a escravização ou reagiam a ela? Apesar de não ser um texto contemporâneo ao período de estudo, houve uma primeira contestação, de outra fonte de saber que não a professora, a respeito das opiniões acerca do negro na sociedade do Segundo Reinado. Era o início da quebra dos antigos paradigmas trazidos pelos alunos, uma vez percebida outras narrativas acerca da história afrodescendente no Brasil.
O passo seguinte foi a análise do livro didático utilizado pela turma. Foi feita uma leitura coletiva do único capítulo dedicado a quase exclusivamente tratar da população negra no século XIX – intitulado “Do trabalho escravo ao trabalho livre”. Solicitou-se aos estudantes o destaque da forma como a população negra, sua participação social e no processo de abolição da escravidão no país eram representadas. Houve consenso entre os estudantes nessa etapa: o texto remetia-se exclusivamente ao negro enquanto mão de obra escravizada, destacando o sofrimento de seu dia a dia. Apesar de afirmar, em uma única frase, sua resistência à escravização, apenas os quilombos foram brevemente mencionados como forma de luta. Quando abordando o processo de abolição, a turma notou haver pouco espaço dedicado à participação de negros e negras nos movimentos abolicionistas.
Para alimentar a discussão suscitada, foi feita a seguinte pergunta à turma: “Quem aboliu a escravidão no Brasil?”. As primeiras respostas replicaram aquilo que escutavam desde os primeiros anos do Ensino Fundamental, ou seja, a Princesa Isabel. Novamente, foram surpreendidos quando a professora afirmou ter sido a herdeira de D. Pedro II a representante do Estado que assinou a lei que extinguia a escravidão. A abolição foi explicada, assim, como um longo processo iniciado pelos principais interessados em vê-la concretizada: os negros e negras que aqui viviam, organizados de diversas formas, e não apenas como escravizados rebelados ou quilombolas. Destacou-se, dessa maneira, a atuação desses indivíduos junto a organizações da imprensa e da política, em ações afirmativas contra a permanência da escravidão nos centros urbanos das principais capitais da época.
De posse dessas informações, a turma deveria construir as biografias de personalidades negras da época, participantes, de diversas formas, das campanhas abolicionistas. Essa fase do projeto consistia na pesquisa e apresentação das trajetórias das seguintes figuras históricas, selecionadas pela professora: André Rebouças, José do Patrocínio, Luís Gama, Maria Firmina dos Reis, Francisco José do Nascimento e Chiquinha Gonzaga; homens e mulheres negras, cujas vivências eram desconhecidas em sua totalidade pelos alunos e alunas.
Divididos em grupos, os estudantes escolheram livremente entre esses nomes, pesquisaram a respeito, confeccionaram cartazes e expuseram suas conclusões à turma. Mais uma vez, mostraram-se surpreendidos não apenas pelas trajetórias marcantes de algumas dessas personalidades, cheias de reviravoltas dignas de uma trama ficcional, como também pela atuação como escritoras, compositoras, jornalistas, advogados, engenheiros. Ou, ainda, pelo enfrentamento a um sistema que os subalternizava.
Na aula consecutiva, destacou-se a Lei Áurea, assinado em 13 de março de 1888. Colocado em um papel 40kg, o texto da lei foi pendurado na parede da sala de aula, e lido em conjunto. Os olhares foram direcionados para os únicos dois artigos existentes, questionando-se se essas poucas letras eram suficientes para suprir as necessidades da população negra. Naquele instante, o objetivo do plano de aula expandia-se para além do reconhecimento dos diferentes espaços ocupados e funções exercidas pelos negros e negras na sociedade brasileira do século XIX. Fazer cada um dos discentes refletir acerca da historicidade do racismo e o papel do poder público na sua preservação foram horizontes construídos à medida que o projeto foi sendo aplicado, criando-se assim novas atividades.
Com essa intenção, propôs-se a leitura de uma reportagem publicada no dia 13 de maio de 2015, no site do Jornal do Brasil. O texto, intitulado “13 de maio: 127 após o fim da escravidão, racismo divide a sociedade”, expunha relatos de casos de racismo sofridos por estudantes e moradores de comunidades, em situações cotidianas ou em abordagens policiais. Novamente, os alunos foram questionados e estimulados a comentar a respeito do que haviam lido em sala de aula.
Da conversa tida, algumas falas surgiram. Ao lerem sobre a violência verbal cometida por um policial negro contra uma das entrevistadas, um dos alunos questionou por que uma pessoa negra agia dessa maneira com outra. Outra aluna, negra, de forma espontânea, relatou à turma ser seguida por seguranças quando vai com a família a um shopping em bairro da zona sul da cidade. Houve, ainda, a pergunta de outro aluno, que perguntou à professora se poderia ser considerado negro. Vivências e reflexões que podem ser tidas como evidências da internalização do conteúdo trabalhado, e da sua ligação com o cotidiano atual dos estudantes, em suas relações pessoais e sociais.
Na última parte do projeto, a turma foi convidada a refletir sobre quais outros artigos deveriam ser adicionados à Lei Áurea para que o racismo visto nos dias atuais fosse combatido com mais eficácia. No mesmo papel 40kg exposto na sala de aula, cada aluno e aluna escreveu seus complementos ao texto original. Abaixo, alguns dos novos artigos criados:
· “Dar casas e terras pros ex-escravos”;
· “Pagar indenizações aos negros”;
· “Prender os donos de escravos”;
· “Construir escolas e cotas para que eles arranjassem emprego”;
· “Pena de morte para os racistas”.
Após a aplicação do projeto, percebeu-se que os alunos tornaram-se mais sensíveis e reflexivos em relação às questões raciais que permeavam o seu cotidiano escolar e social, bem como aos conteúdos da disciplina. Tornaram-se mais frequentes os relatos de casos de racismo, tanto os que eram veiculados nas grandes mídias quanto os presenciados em seu dia a dia. Uma das alunas, reproduzindo fala vista em programa de televisão, disse que poderia comer biscoito a partir daquela data, pois havia um casal famoso de atores negros fazendo propaganda de um produto na televisão. A naturalização de relações desiguais foi sendo paulatinamente problematizada por alguns daqueles estudantes.
“13 de maio: 127 anos após o fim da escravidão, racismo divide o Brasil.” Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 13. Mai. 2015. < http://www.jb.com.br/pais/noticias/2015/05/13/13-de-maio-127-anos-apos-o-fim-da-escravidao-racismo-divide-a-sociedade/>
AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites no século XIX. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
GONÇALVES, Maria Alice Rezende; RIBEIRO, Ana Paula Alves. “A questão étnico-racial e o sistema de ensino brasileiro.” In GONÇALVES, Maria Alice Rezende; RIBEIRO, Ana Paula Alves (org.). História e a cultura africana e afro-brasileira na escola.Rio de Janeiro, Outras Letras, 2014, p. 11-23.
MUNANGA, Kabengele. “Educação e diversidade cultural”. Cadernos PENESB, Rio de Janeiro, n. 10, jan.jul. 2008/2010, p. 10.
Parabéns pelo interessante trabalho. Houve algum aluno durante a realização desse trabalho que mostrou resistência ou dificuldade em se afirmar como negro?
ResponderExcluirGrata, Siméia Teixeira Gomes Silva
Oi, Siméia! Muito obrigada pelo seu comentário elogioso.
ResponderExcluirEssa turma em especial eu acompanhava desde o 6º ano. Observava que alguns alunos e alunas resistiam em se definirem como negro ou negra: se autodeclaravam como morenos/morenas, ou mesmo brancos (as). Ao mesmo tempo, alguns colegas desencorajavam os estudantes que se afirmavam como negros e negras. Diziam algo como: "Ah, mas você não é." O que eu pude perceber é que alguns estudantes passaram a se afirmar como negros e negras à medida que os debates avançavam. Outros se questionavam sobre sua identidade. Houve o caso de um aluno que me perguntou se ele era negro. A minha resposta foi que ele mesmo é quem tinha que responder àquela pergunta.
Acredito que o trabalho tenha sido um avanço nesse sentido. A existência de perguntas já é indício da existência de reflexão.
Abraços!