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José Luciano

CINEMA E ENSINO DE HISTÓRIA: INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E A IGREJA PERSEGUIDORA
José Luciano de A. Dias Filho
UPE

A história das religiões monoteístas está marcada pela intolerância, no momento em que estas exigem a verdade em uma única divindade, um deus único onipotente, se torna inerente a resistência as outras divindades. Mesmo que elas façam discursos sobre amor, caridade e misericórdia, sobrevive uma porção de intolerância ao outro, quando este representa um grupo religioso, a fraternidade ocorre principalmente entre os que compartilham a mesma fé. (SOUSA FILHO, 2014, p.4) Como escreveu Peter Sloterdijk, em seu livro O zelo de Deus: “Assim, já nos escritos do apóstolo dos povos anuncia-se um amor que, caso não seja correspondido, se transforma em maldade com ânsia de extermínio.” (SLOTERDIJK, 2016, p.79)
As religiões monoteístas conquistaram os corações de um número altíssimo de pessoas, sendo o cristianismo e o islã as duas grandes potências religiosas atuais. A Igreja conseguiu sua ascensão definitiva no governo de Teodósio I (378- 395 D.C), no qual o cristianismo virou religião oficial do império, tendo fortalecimento no poder político oferecido pelo Estado e endurecendo a legislação no trato de judeus, pagãos e hereges. (GONÇALVES, 2013, p.12)
Essa relação entre política e religião cristã se estabeleceu no Império Romano e foi marcada por uma violenta e intensa intolerância religiosa, que resultou na perseguição de pagãos, judeus e até mesmo grupos cristãos heréticos ou cismáticos, que não seguiam as doutrinas da Igreja Católica. A cristianização do mundo pagão, não pode ser lida apenas sob a ótica da evolução, romântica, idealizada no espaço de louvação de novo sistema religioso, na qual a figura do oponente desaparece como um primitivo desgovernado. O processo de cristianização dos homens precisa ser lido, como qualquer outro, na inflexão da violência. (NAGEL, 2006, p.118) A intolerância estava na raiz da sua expansão religiosa, o combate ao outro, aquele que não era cristão católico, passou a ser uma prática cotidiana quando a igreja conseguiu autonomia e poder.
Logo, discutir intolerância religiosa na sala de aula se torna uma necessidade dupla, tanto por ser um fenômeno praticado no passado, quanto por continuar existindo na atualidade. A intolerância religiosa pode acontecer de várias formas diferentes, praticadas por vários grupos religiosos distintos, ou um grupo não religioso, porém, o cerne da discussão fica centrado na intolerância religiosa cristã para com outros grupos. Uma ótima forma de levar esse, ou outros debates, para a sala de aula é usando filmes como recurso e ferramenta de ensino, pois é uma mídia em que os alunos estão acostumados e está normalmente associado aos momentos de lazer. A proposta de discussão sobre determinada temática fica mais lúdica e rompe com a monotonia das aulas cotidianas.
Para Robert A. Rosenstone é preciso aceitar que o cinema, especialmente longa- metragens dramáticos, podem transmitir um tipo de História, que referido pelo autor com “H” maiúsculo, seria um conhecimento sério e acadêmico em que as pessoas acreditam encontrar apenas nos livros de história. (ROSENSTONE, 2010, p.15) As obras cinematográficas de representação histórica alcançam públicos gigantescos, basta olhar a bilheteria de filmes como Tróia (2004) ou 300 (2006), que no primeiro caso se apresenta como uma adaptação pouco fiel da Ilíada, e no segundo mistura bizarrices em meio a trama do conflito espartano. Tais obras cinematográficas vão continuar fazendo sucesso com o público, independe se os professores de história irão ou não usar esses filmes para ensinar sobre o passado. O fato é que tais filmes afetam a maneira como as pessoas vêem o passado e compreendem os processos históricos, deixá-los de fora da equação significa ignorar a maneira como um segmento enorme da população passou a entender os acontecimentos. (ROSENSTONE, 2010, p.17)
O filme escolhido para conduzir a discussão sobre intolerância religiosa foi Ágora (2009), lançado no Brasil como Alexandria. É um filme espanhol, dirigido por Alejandro Amenábar, que conta a história da filósofa alexandrina Hipátia (Hipácia), que viveu em um período de turbulência religiosa em sua cidade, e no final acabou sendo vítima da violência causada pela intolerância. O filme pode ser dividido em duas partes, tendo a destruição da Biblioteca de Alexandria como um marco divisor. Na primeira parte os cristãos são apresentados como um grupo em ascensão, combatendo as religiões pagãs que eram cultuadas em Alexandria. O filme inicia com uma discussão entre fanáticos da irmandade cristã dos Parabolanos e pagãos que cultuavam as divindades locais, o fervor da discussão é tão intenso, sobre qual religião é a verdadeira, que um líder da irmandade chega a jogar um pagão contra o fogo.
Outro momento de forte intolerância demonstrada pelos cristãos, é quando eles se reúnem na Ágora para zombar dos deuses pagãos, essa atitude vai gerar uma reação violenta fazendo com que pagãos armados ataquem os cristãos. No entanto, como o cristianismo já estava bem estabelecido, possuindo fieis na maioria da população da cidade, os pagãos tiveram que fugir, perderam o confronto e tiveram sua biblioteca, símbolo de conhecimento pagão, saqueada e destruída. A destruição da Biblioteca de Alexandria representa a derrota pagã na cidade, logo os cristãos se voltaram contra os judeus, atacando-os violentamente até expulsarem da cidade.
A igreja em sua origem não demonstrava uma natureza intolerante com ações violentas, o cristianismo sempre foi uma religião de forte proselitismo, mas não combatia ou reagia aos ataques de outros grupos religiosos com agressividade. “Durante o período de repressão, os cristãos permanecem fiéis à sua postura fundamental de não violência, de passividade extática.” (SLOTERDIJK, 2016, p.75) Porém, após o Édito de Milão (313 D.C), medida que retirava o cristianismo da clandestinidade reconhecendo o princípio de liberdade de crença, o número de cristãos cresce vertiginosamente, pois Constantino vai garantir que a Igreja Católica seja privilegiada de muitas formas pelo governo: “Entende-se muito bem o que historiadores críticos à Igreja querem dizer quando datam o pecado original do cristianismo no momento em que começou a dividir o acampamento com o poder secular.” (SLOTERDIJK, 2016, p.75)
No momento em que Igreja começou a se misturar com o Estado, o poder de controle social modificou o cristianismo em uma religião que não aceitava o outro, apenas aqueles que comungavam da mesma fé, o amor que Jesus pregou ao próximo só era válido se o próximo fosse cristão. De acordo com José Mário Gonçalves, a vida em sociedade é uma construção humana, e nessa construção a religião ocupa um espaço mais destacado, pois ela atua em um papel de legitimação da ordem social, relacionando- a com a ordem suprema e sagrada. Por isso a religião é um lugar privilegiado para a prática da intolerância, uma vez que qualquer crença ou prática religiosa vista como desviante poderia ser tida como uma ameaça à estabilidade da vida política social. (GONÇALVEZ, 2013, p.7) A religião cristã, após passar pelo processo de clandestinidade, até a sua ascensão, vai ocupar esse lugar de poder legítimo da ordem social romana, sendo praticamente impossível as suas ações intolerantes e violentas.
De acordo com a perspectiva de Paul Veyne, Constantino não colocou o altar a serviço do trono, mas o trono a serviço do altar, ponderou os objetivos e o progresso da Igreja em uma missão essencialmente do Estado. Isso foi uma novidade, é do cristianismo que se origina a entrada sistematizada do sagrado na política e no poder. (VEYNE, 2010, p.110-111) Dessa forma, Igreja se torna intolerante a medida que ganha poder do Estado, tornando-se responsável de barrar qualquer crença ou prática religiosa que ameace a estabilidade da vida política social.
Alexandria era a capital da província do Egito, logo se tornou um dos grandes centros nascentes do cristianismo, que era uma religião essencialmente urbana. Sua considerável população cosmopolita fazia dela a segunda cidade mais importante do império, alimentava um clima de liberalismo espiritual e cultural, propício ao desenvolvimento de todas as doutrinas. (PELLISTRANDI, 1976, p.99) Motivo suficiente que levou a Igreja a combater violentamente os grupos pagãos da cidade, para conseguir o controle sócio-político que almejavam. Qualquer grupo religioso que não fosse cristão católico, era visto como um perigo em potencial, pois sobre esses indivíduos a Igreja não tinha controle. A brutalidade da morte da filósofa Hipátia (Hipácia), protagonista do filme, mostra o grau de intolerância religiosa para com aqueles que continuavam resistindo e confrontando a Igreja. Hipátia foi retalhada pelos Alexandrinos e seu corpo foi esquartejado por toda a cidade. (SOUZA NETO, 2016, p.335)
A partir dos discursos e representações apresentados pelo filme Ágora (2009), é possível compreender boa parte do aspecto religioso do período, tendo a intolerância religiosa como enfoque do debate, tanto sobre a forma como a religião cristã conduziu sua expansão, sobre como sobreviveram os novos formatos de intolerância religiosa na atualidade. Segundo Ferro, o filme enquanto agente histórico desempenha um papel ativo contribuindo para uma conscientização, no entanto, a obra cinematográfica também é uma contra-análise da sociedade. (FERRO, 2010, p.11) A partir da representação do passado é possível refletir sobre o nosso presente.

Referência bibliográfica
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
GONÇALVES, José Mário. (In)Tolerância religiosa na antiguidade tardia: apontamentos históricos.  REFLEXUS- Revista de Teologia e Ciências das religiões, Ano VII, n. 9, 2013/1.
NAGEL, Lizia Helena. Na mudança: a violência por parteira. In: MELO, José Joaquim Pereira Melo .(Org).; PIRATELI, Marcos Roberto .(Org). Ensaios sobre o cristianismo na antiguidade: história, filosofia e educação. Maringá: Eduem, 2006.
PELLISTRANDI, Stan- Michel. Grandes civilizações desaparecidas: o cristianismo primitivo. Rio de Janeiro: Editions Ferni, 1976.
ROSENSTONE, Robert A. A História nos filmes, os filmes na História. Paulo: Editora Paz e Terra, 2010.
SLOTERDIJK, Peter. O zelo de deus: sobre a luta dos três monoteísmos. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
SOUSA FILHO, Vicente Gregório. Religião, gênero e dignidade humana. Protestantismo em Revista: São Leopoldo, v. 35, p. 116-126. Set./Dez. 2014
SOUZA NETO, José Maria; SILVA, Kalina Vanderlei; SCHURSTER, Karl. Pequeno Dicionário de Grandes Personagens Históricos. Alta Books: Rio de Janeiro, 2016.
VEYNE, Pual. Quando o nosso mundo se tornou cristão: (312- 394). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.



9 comentários:

  1. Olá Luciano,
    Qual o processo de utilização desse filme em sala de aula? E quais elementos da relação presente-passado você pensa em utilizar?

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  2. Caro Luciano de A. Dias Filho,
    vejo que sua proposta é interessante, mas tenho sugestões e discordâncias. Apresento-lhes:
    1º parágrafo: O sagrado é uma experiência violenta. Para René Girard, Deus é a experiência personalizada. Para o pensador, os deuses não são inventados, mas são a interpretação da própria violência humana. Portanto, a violência já está nos discursos de origem do cristianismo e o que se sucede em múltiplas interpretações, trata-se de um acréscimo das violências de cada tempo e instituição. Assim, creio que a intolerância das instituições é fruto já de uma violência que está no discurso bíblico. Sugiro que veja a teoria do bode expiatório de René Girard.
    3º parágrafo: Creio que na antiguidade não havia a ideia de “laicização”, pode-se assim diante de toda expansão cristã aplicar a ideia de intolerância religiosa?
    5º parágrafo: Creio que o número de bilheteria dos filmes não define a qualidade dos filmes. Acho que os filmes também não podem afetar a maneira como as pessoas veem o passado. Desenvolver melhor essa possibilidade.
    6º parágrafo: Quando você chama um grupo de “fanáticos”, você acaba expondo seu juízo sobre os outros.
    7º parágrafo: definir a temporalidade do filme.
    8º parágrafo: definir os conceitos, por exemplo: pagão.
    9º parágrafo: Ficou meio confuso.
    10º parágrafo: Como eu disse, a igreja é intolerante em sua essência, uma vez que é “preciso aceitar a sua verdade” para salvar-se. Creio que ela já é intolerante antes de se unir ao Estado. Definir melhor sobre qual igreja você diz.
    11º parágrafo: Analisar sobre quando a ideia de intolerância surge.
    Quanto ao parágrafo 12 (último parágrafo), discordo do pensamento de Ferro quando ele afirma que o filme “conscientiza” enquanto agente histórico. O filme, como outras obras de arte, sempre nos deixam um ponto de interrogação quanto à problemática exposta, permitindo que o receptor tenha diversas opiniões, seja tolerante ou intolerante. Talvez se você estivesse explorado melhor o que “Ferro” afirma sobre o filme enquanto “contra-análise” da sociedade, ficaria mais interessante.
    Parabéns pela proposta, espero que as minhas sugestões tenham ajudado,
    Assinado: Pablo Henrique Costa Santos.

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  3. 1- Interessante, irei procurar saber mais sobre a teoria do bode expiatório de René Girard.
    3- Realmente possivelmente não havia a ideia de laicização, o governo romano possuía vários elementos religiosos como culto imperial, antes do processo de cristianização. Mas compartilho a ideia de que: “Durante o período de repressão, os cristãos permanecem fiéis à sua postura fundamental de não violência, de passividade extática.” (SLOTERDIJK, 2016, p.75)Logo essa postura teria mudado com a relação do Estado romano e a Igreja, desenvolvendo uma intolerância religiosa aos outros grupos religiosos.
    6- Verdade, ficarei mais atento.
    Esse meu interesse pela temática é recente, gostaria do seu Email/Facebook para contato, principalmente para indicação de leituras. Desde já agradeço.

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  4. https://www.facebook.com/pablo.henrique.9212

    email: pmacknamara@yahoo.com.br

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  5. O recurso dos filmes é realmente fantástico e inesgotável! Você utiliza os filmes completos ou trechos específicos?

    Atenciosamente: José Roberto Wosgrau

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    1. Depende muito da disponibilidade, mas o mais comum é trabalhar cenas específicas dos filmes.

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  6. Olá Luciano.
    Por gentileza, você poderia disponibilizar outros filmes relacionados ao tema?


    Att. Aline Cândida.

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  7. No momento só tenho trabalhado com esse.

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  8. Prezado Luciano. A discussão sobre a intolerância é de imensa importância no tempo presente. Vivemos um período em que a intolerância e a imposição de um discurso único, defendidos por violentos discursos de ódio, têm ameaçado a liberdade de credo, que deve ser entendida como um direito individual e inalienável. Vide exemplos como o ISIS, no cenário internacional, e de grupos fundamentalistas brasileiros, que promovem ataques violentos e recorrentes às religiões de matriz africana (ou mesmo à religião católica, através da destruição de santos, fachadas de igrejas e elementos de sua iconografia). O debate sobre a intolerância é capaz de promover uma formação mais humana e inclusiva, indispensável para a vida em sociedade. Parabéns pela sua proposta, e por quebrar aquela velha máxima do senso-comum segundo a qual "religião não se discute". É claro que se discute, e precisa ser cada vez mais discutida! Sugiro apenas que se aprofunde mais nos estudos de cinema. Tome cuidado para não utilizar generalizações como "longa- metragens dramáticos", que não têm um sentido claro. Indico também o último filme do Scorcese, "Silêncio" (2016), que se empenhou em mostrar a intolerância de outra perspectiva (dos japoneses para com os cristãos). A pergunta que deixo é a seguinte: como os alunos têm respondido a essa discussão?

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