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Jessica Caroline

O NEGRO NA FORMAÇÃO DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA: ENTRE OS DISCURSOS MIDIÁTICOS E A CONSTRUÇÃO DE ESTERÓTIPOS
Jessica Caroline de Oliveira
Mestranda em História – UEPG

Não é novidade os debates e embates acerca do preconceito e racismo, o que tem gerado tensões entre as diferentes opiniões, as quais, pautadas no princípio de liberdade de expressão, utilizam as mídias e redes sociais para tornar pública as suas interpretações e perspectivas sobre as realidades sociais, políticas, econômicas e sociais. Estas práticas podem ser entendidas como um problema, no momento em que se utilizam único e exclusivamente do seu senso comum, este, por sua vez, vinculado a simplificações rasteiras e preguiçosas, que pouco avaliam os processos históricos associados as suas ‘opiniões’. Portanto, essa tal liberdade de expressão abre caminho para afirmações preconceituosas, estereotipadas e racistas, conteúdo que será consumido pelos seguidores em diferentes redes socais. Neste sentido, mais do que uma mera opinião, quando nos referimos a estes materiais, estamos falando em formação de opinião, pois, as pessoas que ainda não produziram um determinado saber acerca de um assunto, ao ler ou ouvir um sujeito que consideram a sua ‘referência’ (por razões que lhes são particulares) intelectual, artística, política ou social, em alguns casos, tomam esse discurso enquanto verdade e passam a reproduzi-lo. Quando se fala em discurso, aqui é pensando pelo viés de Paul Ricouer (1989, p. 112), o qual salienta que “o discurso é sempre discurso a respeito de algo: refere-se a um mundo que pretende descrever, exprimir ou representar [...] só o discurso possui, não somente um mundo, mas o outro, outra pessoa, um interlocutor ao qual se dirige”.
Partindo das informações acima apresentadas, este ensaio tem por objetivo observar os discursos produzidos sobre questões étnico-raciais de dois sujeitos conhecidos e mencionados em sala durante um debate na aula inicial deste ano letivo. Esta atividade foi realizada nas turmas de 8º ano 1, 2 e 3, do Núcleo Educacional João Fernando Sobral, localizado no município de Porto União (Santa Catarina), em 2017. A discussão em si, estava vinculada aos usos de argumentos religiosos na tomada de decisões legislativas em relação ao aborto, homossexualidade, feminismo, enfim, se tratava de aula inaugural e alguns pontos do planejamento semestral foram arrolados à guisa de introdução. A metodologia empregada foi a aula expositiva dialógica, utilizando-se assim, da autora Osima Lopes (1991) para orientar os percursos da aula, fazendo uso do diálogo e dos saberes prévios dxs discentes para fomentar os pontos pertinentes a aula, a fim de elaborar e reelaborar o conhecimento histórico.
Nesta acepção, quando o assunto se trata de religião e discriminação, não é de se surpreender que o nome do Deputado Marcos Feliciano seja uma indicação apresentada pelxs alunxs. Isso se deve por algumas publicações realizadas em sua rede social, em que declara que os africanos descendem de um ancestral amaldiçoado por Noé, utilizando assim, um argumento religioso para legitimar a sua opinião e visão acerca do continente africano. Noutra publicação, este senhor escreve que: “sobre o continente africano repousa a maldição do paganismo, ocultismo, misérias, doenças oriundas de lá: ebola, AIDS. Fome...". Em linhas gerais, segundo ele, a “fome” e a “AIDS”, por exemplo, seriam fruto dessa do “paganismo” e do “ocultismo”, deixando de lado todo o processo histórico que desencadeou estas questões, além de generalizar e estigmatizar regiões específicas em que há maior ou menor incidência de doenças, ou desigualdades sociais. Noutras palavras, a África, em seus 54 países e toda a sua diversidade cultural, étnica, política e econômica, é sintetizada como “uma coisa só”, em que se leva em conta um discurso mitológico produzido a aproximadamente dois mil anos e se esquece toda a bagagem intelectual produzida e saberes populares que, de geração a outra, mantem viva a chama da ancestralidade africana e, por assim dizer, revela o que o senhor Deputado não é e não foi capaz de perceber: a verdadeira riqueza cultural, étnica e econômica africana.
Outro sujeito mencionado em sala de aula, embora não seja um político, ganhou destaque entre 2016 e início de 2017 (ainda que se tenha tentado abafar o caso), me refiro a um youtuber chamado Lucas Marques, do canal Você Sabia?. Assim como o senhor mencionado anteriormente, utilizou de sua rede social para manifestar sua liberdade de expressão, isto é, insultar mulheres, negros, nordestinos e homossexuais. No que diz respeito as questões etnicorraciais, antes da exclusão de suas postagens, publicou: “procurando quem me roubou numa multidão de pretos”. Não vou me ater a discutir em demasia a imbecilidade desta publicação, a qual, segundo apresentado pelxs alunxs, era uma piada, assim como tantas outras que fazem parte do cotidiano brasileiro. O elemento que aqui me fez citar este sujeito é a associação do afro-brasileiro à criminalidade, o que não é raro encontrarmos referenciais semelhantes em outros discursos, sobretudo, aqueles exibidos em novelas, onde o negro é o empregado, favelado ou criminoso. E mais uma vez reafirmo: opiniões como estas são consumidas diariamente pelas pessoas, o que deixa a seguinte inquietação: de que forma esta produção de discurso atinge ou influência na formação da consciência histórica dxs nossxs alunxs?
Para buscar entender os saberes produzidos pelas turmas selecionadas para este ensaio, solicitei que, após uma breve discussão sobre os eixos de ensino apresentados na aula, xs mesmxs escrevessem em uma folha o que sabiam, entendiam ou gostariam de entender melhor daquilo que foi exposto no debate, tomando como exemplo o racismo, a homofobia, feminismo, desigualdade social, enfim, a pergunta foi demasiadamente ampla, buscando assim, dar liberdade às respostas e, por assim dizer, a liberdade de expressão de cada discente. Ou pensando em termos mais conceituais, procurando conhecer a consciência histórica discente, em que segundo Jörn Rüsen (2007), se trata da soma de todos os saberes adquiridos, seja na escola, em casa ou com as demais fontes de informação que, em conjunto, tecem significados, interpretações e orientações na vida prática.
Em síntese, podemos apontar alguns aspectos que delinearam as atividades (que ainda estão em processo de análise e irão compor um artigo), entre eles, ficou evidente a associação do negro ao trabalho escravizados, os castigos sofridos, a tristeza e a saudade da sua terra de origem – em parte, acredito que se deve a exibição da minissérie Raízes em uma emissora de TV, ou a novela Escrava Mãe, demonstrando, deste modo, que as mídias fomentam a formação da consciência histórica. Podemos observar este fato através do seguinte trecho extraído de um dos textos entregues: “Eles vieram trazidos pelo trafico negreiro, mesmo a gente generalizando eles como africanos, a vinda deles trouxe diferentes culturas. O negro hoje não é respeitado como os “brancos”, eles não tem o mesmo respeito. Todas ou quase todas as pessoas pensam numa pessoa negra como um escravo.”
Neste mesmo rol de redações foi descrita, ou melhor, criticada as constantes humilhações de uma personagem negra numa novela, em que é chamada de “retirante”, “morta de fome”, “nordestina”, “faxineira”, entre diversos insultos que estereotipam não só sujeito negro enquanto faxineiro ou subalterno, como também, a sua questão social ou regional, neste caso, o Nordeste. Partindo destas colocações, uma aluna escreve que: “eu não sou negra, não tenho parentes negros e aqui na cidade a maioria é branca mas não é por isso que eu acho que sou melhor, acho que brancos e negros devem ser tratados iguais. Me sinto mau em ver a Joana ser esculachada pela Barbara, minha mãe nem gosta que eu fique assistindo e por não gostar de ver esses xingamentos eu prefiro ver outra coisa.”
Preciso fazer um pequeno adendo quanto a produção dos textos individuais após o debate coletivo na sala de aula, pois solicitei que fizessem pequenos grupos e voltassem a conversar sobre os elementos apresentados para a disciplina e, a partir desse diálogo, escrever cada qual a sua redação, por isso, é possível verificar que em cada grupo um determinado caractere se destacou, como a escravidão, personagem em novelas, redes sociais, violência e criminalidade, bem como, as letras de músicas no funk e no rap. Para não me estender demais, apontarei apenas um último comentário realizado sobre as letras de músicas que, segundo xs alunxs, quando afirmam gostar destes gêneros músicas, são rotulados enquanto “faveladxs”, “maconheirxs” e “putxs”, ou então, apenas dizem que é “música de preto”, seja pela família, colegas de escola e do bairro, ou mesmo professorxs.
Quando li, em três textos, que professorxs reforçam estes estigmas, considerei a possibilidade de estar numa sala de aula em que a criticidade é deixada de lado, ou seja, o ambiente escolar se torna um espaço formador de bonecos reprodutores de discriminação, preconceitos e sem qualquer senso crítico. Anderson Oliva (2006) argumenta que a falta de formação e estudos publicados sobre a história africana e afro-brasileira, leva a uma insegurança em ministrar aulas sobre o tema, deixando-o passar, fazendo uso do material didático que nem sempre faz um debate articulado com o compromisso e a responsabilidade de produzir um conhecimento crítico, capaz de compreender e dialogar os processos históricos entre passado e presente e, por assim dizer, não resumi-lo a uma história medíocre, desatenta e incapaz de apresentar os diferentes sujeitos históricos em suas múltiplas culturas e temporalidades, portando, demonstrando o sujeito histórico africano e afro-brasileiro para além destes estereótipos que só gritam a desigualdade, injustiça e impunidade em nosso país.

Referências
LOPES, A. O. Aula expositiva: superando o tradicional. In: VEIGA, Ilma Passos Alencastro (Org.) Técnicas de ensino: Por que não?. Campinas, SP: Papirus, 1991.
 OLIVA, A. R.. A história africana nos cursos de formação de professores. Panoramas, perspectivas e experiências. Estudos Afro-Asiáticos. Ano 28, n° 1/2/3, Jan-Dez 2006, pp. 187-220.

RÜSEN, J. História viva: formas e funções do conhecimento histórico. Jörn Rüsen; tradução de Estevão de Rezende Martins. – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007.

4 comentários:

  1. Olá Jessica Caroline, muito interessante sua proposta de análise, parabéns! Gostaria de saber quais os métodos de trabalho que estás articulando junto com alunas e alunos para a desconstrução desses esteriótipos? Gostaria de saber também se pretendes utilizar a categoria de análise gênero para compreender como esses esteriótipos são declarados? Sugiro também uma pesquisa de cunho interseccional, utilizando categorias como, sexo, sexualidade, classe, geração, dentre outras para que possas analisar com mais concretude essas relações de discursos midiáticos e esteriótipos.

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    1. Olá Talita, obrigada pelas considerações.
      Então, primeiramente preciso salientar que se tratou de uma aluna bem introdutória e diagnóstica, no sentido de perceber quais pontos precisam ser problematizados e, conforme as aulas, ir desdobrando cada um deles. Logo, haverá aulas específicas, ou melhor, intervenções pedagógicas para fomentar cada ponto desta discussão, tanto sobre preconceito, discriminação, intolerância religiosa, e sim, gênero também... Há dois anos atrás já realizei uma intervenção específica a respeito da categoria gênero, feminismo, a construção de feminilidades e masculinidades, violência... E, para cada aula, requer realmente estudo e pesquisa, a fim de não fazer a discussão por fazer, mas buscar permitir a construção de um conhecimento crítico e a desconstrução de muitos discursos tidos como 'normais' ou 'sempre foi assim'... Como este mês é da resistência indígena, agora estou trazendo discursos de lideranças indígenas para a sala de aula, por exemplo.

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  2. Olá Jessica,
    no seu texto, em algumas falas reproduzidas dos discentes, fica claro como eles próprios não se sentem confortáveis diante desses preconceitos produzidos pela mídia. Esse desconforto foi algo que pode ser observado em boa parte das redações? E ainda, em algum momento, quando essa temática estava sendo desenvolvida, pode identificar nas discussões ou mesmo nos textos escritos pelos alunos uma reprodução clara desses estereótipos realizados pela mídia?
    Parabéns pela excelente discussão apresentada.

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  3. Oi Kamila, obrigada pelos questionamentos.
    Esse desconforto não se dá na maioria não, infelizmente, ainda tratam dos temas suscitados como brincadeira, realizando piadas e muitas manifestações de intolerância religiosa. Não quis entrar neste debate, porque só ele já daria um texto e outras análises... Mas, por exemplo, o discurso religioso é utilizado para criticar quase todos estes pontos, sobretudo, aqueles que dizem respeito a gênero. Contudo, penso que é um caminho longo e não será em uma aula que haverá a mudança que gostaria de ver no mundo... demonstrando que com o 'outro' não se faz piadinhas, ou que o respeito é fundamental nas relações humanas, acredito que ainda conseguirei bons resultados nas turmas que atuo.
    Att.
    Jessica

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