Páginas

Gustavo Batista

A PRODUÇÃO FÍLMICA NO ENSINO E NA PESQUISA HISTORIOGRÁFICA
Gustavo Batista Gregio
Dnt. História UEM

O presente trabalho busca realizar uma breve discussão e reflexão sobre a produção fílmica como documento e fonte no ensino e na pesquisa historiográfica. Para tanto, é necessário compreender que a produção cinematográfica no decorrer do século XX adquiriu significativa importância seja como produção cultural ou instrumento de ensino. O cinema antes visto apenas como objeto de diversão e entretenimento popular adquiriu principalmente nas Ciências Humanas novo status, transformando-se em fonte e documento para novas abordagens teóricas, especialmente temáticas cujo enfoque fosse às culturas e as sociedades.
Na História, inúmeros estudiosos buscaram analisar e compreender as estratégias, os elementos, as técnicas e os signos empregados na produção fílmica. A atual relação interdisciplinar da História com outras áreas do conhecimento ocorreu inicialmente a partir das teorias elaboradas pela École des Annales, a qual figura na história da historiografia como o movimento que, efetivamente, rompeu com os modelos tradicionais historiográficos do século XIX, instaurando uma nova concepção de se produzir o conhecimento histórico.
Na ótica de Le Goff (2003), o principal objetivo dos Annales foi destronar a História política numa tentativa de reformular uma nova História política, no caso, uma história com uma nova concepção do político. As reformulações proposta pelos Annales impulsionou um profundo movimento de transformação na historiografia, criando uma geração de historiadores que passou a questionar a hegemonia da História política e a defender uma nova concepção de História, na qual o social tornar-se-ia fundamental.
Os Annales e posteriormente a Nova História, constituíram novas visões para a análise histórica, reformulando paradigmas e assinalando que o conhecimento histórico não poderia jamais se fechar em si mesmo. Deveria apresentar caminhos alternativos para a pesquisa, atingindo sempre novos elementos distintos, unindo áreas do saber, no diálogo para a construção do conhecimento científico.
Surgiram novas problemáticas e sentidos para a História, muitas vezes sequer entrelaçados entre si. Essa nova perspectiva historiográfica se caracterizou não somente por trabalhar com um corpo documental diversificado e novos objetos de pesquisa, mas, por buscar nas velhas fontes, novas leituras. A partir da Nova História, surgiu a História Cultural, que teve maior visibilidade a partir das últimas décadas do século XX. Chartier (1990) compreende que a História Cultural é a história da maneira como os indivíduos e a sociedade representam a realidade e de como essas representações orientam suas práticas socioculturais.
De forma sucinta, assinalamos as transformações que ocorrerem na construção do conhecimento histórico e que tais problemáticas tornaram a História interdisciplinar, possibilitando novas perspectivas e incorporando novas fontes na pesquisa historiográfica, como a produção audiovisual. Marc Ferro foi um dos pioneiros responsáveis por essa inovação. O autor defendia que a não aceitação da linguagem cinematográfica no fazer histórico ocorreria em função desta ser concebida como parte do imaginário social, que, por sua vez, também não pertencia ao campo de estudo da História. Entretanto, essa nova historiografia ao romper com tais paradigmas, fez com que o historiador buscasse na projeção da ficção a percepção de novas sensibilidades, elencando-as como objeto de questionamento, na tentativa de decifrar práticas socioculturais representadas.
Entrementes, a representação fílmica passou a ser maior aprendida a partir dos anos finais do século passado, indo de encontro com o grande desafio da História Cultural, o qual era de atingir um reduto das sensibilidades e de perceber como se dão os processos de reconstrução da realidade.
As representações construídas sobre o mundo não só se colocam no lugar deste mundo, como fazem com que os homens percebam a realidade e pautam a sua existência. São matrizes geradoras de condutas e práticas sociais, dotadas de força integradora e coesiva, bem como explicativa do real. Indivíduos e grupos dão sentido ao mundo por meio das representações que constroem sobre a realidade (PESAVENTO, 2004, p. 39).
Como apontamos, a História Cultural abriu um novo leque de possibilidade para a pesquisa e o ensino da História, mas, é importante salientar que um estudo ou pesquisa que se paute nas representações audiovisuais e na produção cinematográfica, requer abordagens metodológicas específicas. Pois, a “imagem-movimento” dessas obras, aliadas às múltiplas técnicas de filmagem, montagem, seleção do enredo, de elenco, de locações, de cenários e de figurinos criam um sistema de significações que cabe aos historiadores decifrarem.
Esses elementos constroem a “impressão de realidade” que têm o poder de materializar uma narrativa, através de suas representações, “tem valor não apenas teórico, mas histórico (ela caracteriza uma época [...])” (AUMONT; MARIE, 2003, p. 163). A “impressão de realidade” é resultado da riqueza receptiva típica do cinema e de suas técnicas, no qual o som e a imagem são complementos fundamentais nessa construção.
Igualmente à presença simultânea da imagem e do som... dando assim a impressão de que o conjunto de dados perspectivos da cena original foi respeitado. A impressão é muito mais forte quando a reprodução sonora tem a mesma “fidelidade fenomenal” que o movimento... ela é mais reforçada pela posição psíquica na qual o espectador se encontra no momento da projeção... definida por dois de seus aspectos. Por um lado, o espectador passa por uma baixa de seu limiar de vigilância; consciente de estar em uma sala de espetáculo, suspende qualquer ação e renuncia parcialmente a qualquer prova de realidade. Por outro lado, o filme bombardeia-o com impressões visuais e sonoras (AUMONT, 1995, p. 150).
A “impressão de realidade” tem como função em uma narrativa fílmica representar a realidade como se ela estivesse sendo capturada e apresentada tal como ela é, criando um simulacro tão fiel ao real que o processo de representação se torna imperceptível aos olhos dos espectadores. Assim, a linguagem cinematográfica constrói uma série de signos de uma realidade, traduzindo os significados do real, apresentando-os através da narrativa audiovisual.
Santaella (2000) observa que a secularidade dos signos sempre tem a possibilidade do efeito de impressão, o qual está apto a produzir por meio de significados. Contudo, o olhar que o espectador lança sobre esses signos representados não está livre, pois esses elementos são regidos pelas escolhas que o diretor, produtores, entre outros, operaram no momento de roteirização, filmagem e edição da obra.
Qualquer coisa de qualquer espécie, imaginada, sonhada, sentida, experimentada, pensada, desejada... pode ser um signo, desde que esta ´coisa´ seja interpretada em função de um fundamento que lhe é próprio, como estando no lugar de qualquer outra coisa. Ser um signo é ser um termo numa relação triádica específica. Essa relação não precisa necessariamente estar armada de maneira prévia para que o signo funcione como tal (SANTAELLA, 2000, p. 90-91).
Em suma, essas narrativas fílmicas têm o poder de nos transportar para um novo mundo de significados, capaz de estimular o nosso inconsciente e de ultrapassar as fronteiras do que entendemos por realidade e ficção. Contraditoriamente, para compreendermos esse mundo ficcional criado pelo cinema, é necessário o apreendermos como uma forma de “realidade”. No qual, os códigos e os signos expressos nas fontes audiovisuais representam outra realidade, outra história e outro tempo.
Toda representação é relacionada por [...] seus espectadores históricos e sucessivos – a enunciados ideológicos, culturais, em todo caso simbólicos, sem os quais ela não tem sentido. Esses enunciados podem ser totalmente implícitos, jamais formulados: nem por isso são menos formuláveis verbalmente, e, o problema do sentido da imagem é, pois o da relação entre imagens e palavras, entre imagem e linguagem. Ponto bastante estudado, do qual vamos só lembrar que não há imagem ‘pura’, puramente icônica, já que para ser plenamente compreendida uma imagem necessita do domínio da linguagem verbal (AUMONT, 1995, p. 248).
Por fim, a produção fílmica transformou o século XX e os anos inicias do século XXI em um gigantesco laboratório de observação, produzindo e reproduzindo imagens e significados dos mais variados possíveis, criando suas próprias representações da História, da cotidianidade e principalmente das relações e das práticas socioculturais.
Desse modo, o historiador deve estar ciente das problemáticas que envolvem apreender a narrativa fílmica como objeto de estudo, pois a linguagem audiovisual, como a imagética, não deve ser apreendida como uma mera ilustração da realidade ou fiel a ela, mas como uma representação, construída a partir de um processo técnico, com visões e escolhas preestabelecidas, as quais devem ser problematizadas, para posteriormente se tornarem conhecimento historiográfico.
Referências bibliográficas
AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas: Papirus, 2003.
AUMONT, Jacques. A imagem. Campinas: Papirus, 1993.
________________. A estética do Filme. Campinas: Papirus, 1995.
BURKE, Peter. A escrita da História: novas perspectivas. São Paulo: Editora UNESP. 1992.
CHARTIER, Roger. A História cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Editora Unicamp, 2003.
________________. A História Nova. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
NAPOLITANO, Marcos. A História depois do papel. In. PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, p. 235-289.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
SANTAELLA, Lucia. A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as coisas. São Paulo: Pioneira, 2000.


6 comentários:

  1. Olá Gustavo,
    Seu texto é uma boa introdução à relação cinema-história. Por trabalhar com o tema, pergunto se você conhece os seguintes livros:
    CARNES, Mark C. (org.). Passado Imperfeito: a História no Cinema. Rio de Janeiro: Record, 1997.
    OLIVEIRA, Carla Mary; MARIANO, Serioja (orgs). Cultura Histórica e ensino de História. João Pessoa: UFPB, 2014.
    ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
    SILVA, Francisco C. T. da et alli (org.). O cinema vai à guerra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2015.
    WYKE, Maria. Projecting the past: Ancient Rome, Cinema and History (New Ancient World). Psychology Press, 1997.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Gustavo Batista Gregio7 de abril de 2017 às 10:37

      Boa tarde José Maria, conheço sim esses livros que você sugeriu. São referencia básicas para quem quer estudar sobre a temática e as relações entre História e cinema, realidade e ficção. Fica a dica para as pessoas que quererem estudar sobre o tema, procurar essa bibliografia sugerida por você.

      Excluir
  2. Olá Prof. Gustavo,
    Já há alguns anos historiadores de diversas partes do mundo têm se dedicado a pensar nos aspectos teóricos e metodológicos de sua disciplina, especialmente a partir da questão em torno da narrativa e da escrita da história. Em tal vereda historiográfica ganharam destaque o debate sobre a questão da verdade em História, a relação passado-presente, o diálogo entre História e Ficção, o estatuto do texto produzido pelo historiador, a aproximação entre História e Literatura. sob esta ótica como o historiador deve se posicionar em relação aos filmes?

    FRANCISCO ELÁDIO PEREIRA DA SILVA
    ACADÊMICO DO CURSO DE HISTÓRIA UAB/UECE - POLO DE CAMOCIM

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Gustavo Batista Gregio7 de abril de 2017 às 10:32

      Boa tarde Francisco, respondendo sua pergunta, nós historiadores que utilizamos a narrativa fílmica como fonte e documento no estudo e na pesquisa historiográfica devemos apreender tal objeto como uma representação da realidade, construída tanto socialmente como culturalmente, de acordo com a sociedade que a produziu. E essa representação jamais deve ser vista como algo fiel a realidade, novamente, é uma construção. Os filmes não tem essa preocupação de narrar a história de fato como ela é, diferente da narrativa histórica, que tem como objetivo principal buscar as verdades dos fatos, entretanto, a produção fílmica, imagética, literária, inserida em seu contexto de produção, pode ajudar o trabalho do historiador a decifrar e decodificar o passado, a história, a partir dessas narrativas.

      Excluir
  3. Caro Gustavo. Primeiramente, parabéns. Seu texto versa com muita propriedade sobre o cinema enquanto fonte de pesquisa histórica, e também destaca a importância de observá-lo enquanto representação de "real" e de analisar as relações entre o cinema e a história. Entretanto, você não chegou a desenvolver muito sobre o uso educativo do cinema, embora tenha discorrido sobre as potencialidades desse meio. Você acredita que seja possível trabalhar com os alunos do ensino básico o cinema enquanto fonte, de modo a mudar o olhar deles sobre essa produção cultural?

    ResponderExcluir
  4. Boa noite!
    Muito pertinente sua abordagem da linguagem fílmica como possibilidade do ensino de História. Gostaria que você elucidasse um pouco mais a citação do Aumont (1995) "para ser plenamente compreendida uma imagem necessita do domínio da linguagem verbal".

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.