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Gabriel Passold

MÚSICAS DE RAP: HISTÓRIA E SUBJETIVIDADES

Gabriel Passold
Mestre em História – UFU/MG

Há um senso comum que pressupõe, nas músicas de rap, uma maior importância do texto em detrimento dos seus outros aspectos sonoros. Autores como Oliveira (2011) e Righi (2011), além de vários outros, compartilham desta visão. Isso não significa que o senso comum é apropriado para falar de todo o universo rap, ou seja, que o rap é mais texto (letras) do que melodia (música). Significa apenas que muitos o abordam nessa perspectiva. E mesmo que parte do próprio universo rap compartilhe disso, partimos do pressuposto de que as letras não são obrigatoriamente a tônica das músicas de rap, mas são parte de um tecido histórico e estético mais amplo, composto por outros elementos sonoros não menos importantes que a letra, como por exemplo, o flow proporcionado pelo arranjo das rimas. Nosso debate é sobre uma possibilidade de análise das músicas de rap em contrapartida à ideia de um senso comumque implica numa vanguarda canônica de “representantes” engajados do rap nacional, ou seja: pensá-lo a partir de um senso comunitário.
Façamos um breve parêntese para algumas considerações teóricas que contribuem para o debate. Se é possível falar de política numa expressão estética e ela não está ligada um arranjo artístico com determinado conteúdo, como uma espécie de senso comum compreende, mas antes, a um senso comunitário prioritariamente estético, um dos primeiros autores a refletir sobre isso foi Immanuel Kant na Crítica da faculdade do juízo (2012), de 1790, que propôs uma “propedêutica de toda arte bela” não mais abalizada em preceitos da tradição,
[...] mas na cultura das faculdades do ânimo através daqueles conhecimentos prévios que se chamam humaniora, presumivelmente porque humanidade <Humanität>significa de um lado o universal sentimentode participação e, de outro, a faculdade de poder comunicar-se íntima e universalmente; estas propriedades coligadas constituem a sociabilidade conveniente à humanidade <Menschheit>, pela qual ela se distingue da limitação animal (KANT, 2012, p. 219).
Kant contribui para pensar que o sentido comunitário, aplicado ao rap, não se liga necessariamente a territorialização do sentido – com tal discurso ligado a tal lugar e grupo – mas se liga a outra espécie de comunidade, baseada em outros pressupostos, como, por exemplo, da igualdade das inteligências e das capacidades de indivíduos quaisquer em comunicar suas histórias, ou seja, num “universal sentimento de participação”.
Nessa perspectiva, não buscamos analisar o rap apenas por um suposto conteúdo discursivo político – pois, antes de tudo, esse conteúdo não é simplesmente pautado tão somente nisso – mas sim, algo que se tece sobre uma humanidade compartilhada universalmente por sentimentos – e não por ideias e conceitos já estabelecidos, como no caso de CONTIER (2005), que aborda as suas letras por um cunho ideológico.
Como demonstração deste critério por nós adotado, continuaremos o debate a partir de um exemplo de letra de rap. Vamos ao seguinte trecho da segunda parte da letra da música Hoje Cedo (2013) de Emicida, com a participação da cantora/compositora Pitty:

Vagabundo a trilha é um precipício, tenso, ou melhor, quero salvar o mundo, pois, desisti da minha família e numa luta mais difícil a frustração vai ser menor, digno de dó, só o pó, vazio comum, que já é moda no século 21,blacks com voz sagaz gravada, contra vilões que sangra a quebrada, só que raps por nóiz, por paz, mais nada, me pôs nas gerais, numa cela trancada, eu lembrei do Racionais, reflexão, aí, os próprio preto num tá nem aí com isso não, é um clichê romântico, triste, vai perceber, vai ver, se matou e o paraíso não existe, eu ainda sou o Emicida da rinha, lotei casas do sul ao norte, mas esvaziei a minha, e vou, por aí, taleban, vendo os boy beber, dois mês de salário da minha irmã, hennessys, avelãs, camarins, fãs, globais, mano, onde eles tavam há dez anos atrás, showbiz como a regra diz, lek, a sociedade vende Jesus, por que não ia vender rap? O mundo vai se ocupar com seu cifrão dizendo que a miséria é que carecia de atenção (EMICIDA, 2013).
Quais os significados da letra desta música? É possível compreendê-la em uma narrativa de “engajamento”? Ou então seria uma crítica a essa ideia? Não temos como responder, pois a música pode, de fato, estimular várias interpretações; logo, não se trata de enquadrá-la num ou noutro lugar de fala, mas essas perguntas mostram uma problemática a ser levantada acerca da relação do pesquisador acadêmico com os signos da expressão artística desse momento estético/político do rap no cenário nacional contemporâneo. A operação que o insere num determinado quadro histórico-social e, a partir daí, extrai as possíveis significações de seus signos discursivos tem, como fundamento a priori, a ideia que a expressão artística – sobretudo aquela da “periferia” – ocuparia, de início, posição de discurso inferiorem relação à interpretação acadêmica, por não se enquadrar em um modelo de argumentação racional.
Podemos pensar na questão histórico-social, por exemplo, como sugere Rancière: de um social que implica o “desvio das palavras em relação às coisas” ou, mais precisamente, do “desvio das nomeações às classificações” em que “nenhum conjunto de traços distintivos” garante mais as posições desses seres falantes em seus “níveis sociais” (RANCIÈRE, 1994, p. 43-44), pois o “social” surge justamente nessa época democrática “engendrada por uma pura abertura do ilimitado e constituída a partir de lugares de fala que não são localidades designáveis”, mas “que são articulações singulares entre a ordem da fala e a das classificações” (RANCIÈRE, 1994, p. 99-100).
Além disso, questionamos a ideia de analisar o rap estritamente pelo “discursivo”, e apontamos para a importância de uma análise de outros elementos, que no caso das letras, pode se ater além do conteúdo significante, como no flowdas rimas de Emicida, nos sons de instrumentos como a bateria e piano, no refrão melódico pela voz da Pitty, entre outros aspectos estéticos de músicas como Hoje cedo.
As letras, por vezes, podem estar inclusive em segundo plano em relação aos sons, afinal, no rap, ainda se trata de música, e nela podem prevalecer quaisquer outros elementos estéticos sobre a necessidade de significar, pois a música não é necessariamente uma “representação” de algo, mas antes, constitui-se de um tecido estético múltiplo, e um timbre, um ritmo ou uma rima, por exemplo, podem desencadear sentimentos que uma preposição muitas vezes não é capaz de expressar.
Ainda que o conteúdo das letras seja de fato, uma parte importante das criações artístico-musicais do rap, quando há uma predominância de um senso comum na história do rap com base quase que exclusivamente nesse aspecto, corre-se o risco de desconsiderar grande parte do processo criativo implicado numa expressão estética como essa. Não podemos esquecer que essas palavras sofrem processos de ressignificações e, portanto, entendê-las a partir de significações objetivas pode inclusive bloquear o seu caráter estético/político/histórico. Ao debatemos outras possibilidades de abordagem com as músicas de rap, que não tão somente baseadas no senso comum que analisa as suas letras numa perspectiva de conteúdo direcionado, mas num senso comunitário onde o que está em jogo são as possibilidades educativas/emancipatórias/subjetivas, nos atemos a historicidade das próprias expressões estéticas, que é a historicidade democrática.

Referências bibliográficas
CONTIER, Arnaldo Daraya. O Rap Brasileiro e os Racionais MC’s. In: Anais Simpósio Internacional do Adolescente. São Paulo. 1,. Out. 2005. Disponível em:<http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000082005000100010&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 9 mar. 2016.
EMICIDA. Hoje cedo. In: EMICIDA. O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui. São Paulo: Laboratório Fantasma, 2013. MP3, 192 Kbps.
KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo.Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
OLIVEIRA, Roberto Camargos de. Música e Política: Percepções da vida social brasileira no Rap. 2011. 177 fls. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia, MG: 2011.
RANCIÈRE, Jacques. Os nomes da História: Ensaio de Poética do Saber. São Paulo: EDUC/Pontes, 1994.
RIGHI, Volnei José. RAP: Ritmo e Poesia. Construção identitária do negro no imaginário do RAP brasileiro. 2011. 515 fls. Tese (Doutorado em Literatura e Práticas Sociais) - Universidade de Brasília. Brasília, DF: 2011.


18 comentários:

  1. Oi, Gabriel Passold.

    Em dado momento, você afirma, através de uma leitura de Kant, que “o sentido comunitário, aplicado ao rap, não se liga necessariamente a territorialização do sentido [...] mas se liga a outra espécie de comunidade, baseada em outros pressupostos”. Na passagem em questão, “ao buscar igualdade das inteligências e das capacidades individuais”, não seria uma estratégia diferente de indicar a territorialização no rap?

    Grato, Nelson de Jesus Teixeira Júnior.

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    1. Caro Nelson, agradeço pela leitura de meu texto pela sua questão. Penso que é possível interpretar a perspectiva do senso comunitário kantiano como uma re-territorialização do sentido. Todavia, essa proposta difere bastante da ideia de que as músicas de rap estão ligadas essencialmente a um grupo social (excluídos) e um território (a periferia). Em contrapartida, se a proposta do senso comunitário pode ser interpretada como uma nova territorialização, penso que trata-se de um território que abarca todos os seres dotados de inteligência, ou seja, desde os moradores das periferias, de condomínios de luxo ou quaisquer outros seres humanos. Nessa medida, é dispensável a indicação do "território do rap", pois em última análise, este território é o próprio planeta Terra.

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  2. Olá Gabriel,
    Conhece o livro Hip Hop: da rua para a escola (ISBN 8520504175)?
    Um cd acompanha o livro, e as músicas podem ser ouvidas aqui: http://hiphopdaruaparaescola.blogspot.com.br/

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    1. Olá, José,

      Não conheço o livro. Me parece interessante, uma vez que traz as músicas em cd e não somente suas letras.
      Obrigado pela indicação!

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  3. Olá Gabriel,

    Gosto bastante de rap, e também vejo que a análise dos versos ou da letra sempre se sobressaem das outras análises que a música permitem. Pensando na análise da música, e em contextualizar, quando você trabalha a análise da música, vicê pensa em analisá-la duas vezes, por conta do sampler utilizado muitas vezes em suas construções?

    Grato,
    Thiago Rafael de Souza

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    1. Olá, Thiago, obrigado pela sua questão. Nesse caso, não procuro contextualizar, mas minha proposta de análise das músicas leva em consideração a historicidade da própria expressão, ou seja, técnicas utilizadas, a variedade de samplers, etc. O problema de contextualizar, nas análises acadêmicas, é que pressupõe a autoridade do acadêmico em colar determinada interpretação de mundo à arte. Na medida em que não considero em minhas análises a dicotomia ficção/realidade, o contexto é a própria música e não depende de elementos externos a ela (ex. rap e um suposto contexto neoliberal). Não tenho um modelo para substituir o modelo arte/contexto nas análises históricas, e não pretendo elaborar um, mas apenas problematizar este modelo e por outro lado mostrar as múltiplas possibilidades interpretativas com as músicas.

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  4. Thiago Rodrigues Martins3 de abril de 2017 às 21:34

    Olá Gabriel,
    Como estudante de História e ouvinte de rap acho que a crítica social feita em suas letras podem realmente serem usadas em sala de aula. Porém temos que analisar que o rap surgiu no final do século XX e somente poderíamos tratar de assuntos contemporâneos. Também podemos levar em conta que o número de rap com críticas sociais nos dias de hoje está relativamente diminuindo, tendo em conta que hoje ele está muito presente na vida da classe média somente como forma de entretenimento e não visto como crítica. Sobre a subjetividade, você não acha que temos que analisar histórica e culturalmente de onde e o porque se fala algo? Até pelas gírias, e isso é ligado diretamente da crítica, como na letra do Emicida: "blacks com voz sagaz gravada, contra vilões que sangra a quebrada"?

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    1. Olá, Thiago. Agradeço pelo seu comentário. Tenho alguns pontos a comentar. Primeiro, sobre a questão do tempo: penso que é possível analisar o rap em relação com outros tempos, como por exemplo, por espécies de aporias de emancipação em suas letras. Ainda que como suposição, não seria possível relacioná-las com esse tema presente em obras de autores como Kant no século XVIII e Nietzsche no final do XIX? Ou então com as próprias músicas de blues do final do século XIX e o samba surgindo no Brasil no início do XX? Outra questão que você colocou, sobre a dicotomia entre música "crítica" e música para entretenimento, ainda que seja um senso comum entre as análises de rap na Universidade, em minha pesquisa procuro mostrar a fragilidade de tal suposição. Não concordo que as críticas sociais estejam diminuindo no rap, mas talvez elas apenas não sejam mais feitas de acordo com a ideia de "engajamento" que parte da academia (será que algum dia seguiram essa ideia?). Enfim, sobre a subjetividade, a questão "de onde" e "porque" talvez não seja o caminho mais indicado a seguir, mas proponho outro ponto de vista: é possível delimitar o "lugar" do rap e a motivação dos artistas a partir do método historiografico? Se fizermos isso, não estaríamos agindo de acordo com uma hierarquia entre quem tem acesso a "verdade" (o historiador) e os que não têm (o "povo), agindo assim contrários a historicidade democrática que tanto o artista quanto o historiador atual participam? São algumas questões que as suas questões me levaram a fazer. Obrigado pelos questionamentos!

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    2. Thiago Rodrigues Martins7 de abril de 2017 às 09:39

      Olá, Gabriel obrigado pela resposta.
      Bom, a questão de acesso é diferente. O rap está muito mais presente na cultura da classe baixa, do "povo" como você diz, do que na universidade. Ele vêm adentrando junto com essa parcela da população que vinha tendo espaço nesse meio. Estudá-lo e usá-lo como uma espécie de fonte não acho que seja um tipo de "apropriação". Sobre relacioná-las com obras como Kant e Nietzsche, acredito que possa acontecer sim, com uma certa subjetividade, para equiparação de ideias. Já como uma "ordem" musical, é com certeza equiparável. Tanto no público, quanto na crítica e inovação. E sobre o engajamento falado, eu acredito que ele sempre foi presente no rap pelo que ele representa na "rua". Ele sempre foi contra o sistema e procurava critica-lo, e mesmo o engajamento sendo em ideais diferentes, ele está presente.
      Acredito que cheguei a essas conclusões, inicialmente, peço que se conseguir pensar em algo, gostaria de ouvi-lo.
      Atenciosamente,

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  5. Olá Gabriel, sou estudante de história e apreciadora de rap também. Gostaria de saber se, na sua opinião e com base em suas experiências, tem espaço para trabalhar o rap no ensino de história na escolas públicas brasileiras? De que forma o rap e seus subgêneros poderiam ser trabalhados, já que existe esse senso comum, como quebra-lo de maneira construtiva? Obrigada.
    Emily Lourenço Pinheiro

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    1. Olá, Emily, obrigado pela sua questão. Penso que, antes de responder se há ou não espaço para a música e sala de aula, é essencial criarmos esses espaços, a fim de tornar a história próxima aos alunos. Uma sugestão para trabalhar em sala de aula, além das próprias músicas, são os videoclipes de música. Por coadunar os sons com as imagens, as possibilidades interpretativas são imensas, e portanto, a visão polissêmica dos alunos pode proporcionar uma discussão enriquecedora em sala de aula nas aulas de história. O importante é levar em consideração as subjetividades, a diversidade do gosto musical, e se ater em ultrapassar a dicotomia "arte para consumo" e "arte para pensar". Qualquer expressão estética pode gerar discussões interessantes em sala.

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  6. O rap é sem dúvidas uma entrada interessante ao universo da crítica. Como utiliza-la no contexto do ensino médio? Parabéns pelo trabalho.

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    1. Olá, Cleverton, obrigado pela sua questão. Penso que as respostas às questões anteriores podem em alguma medida responde a sua questão, principalmente o questionamento da Emily.

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  7. Olá, Gabriel!
    Interessante seu trabalho. Através do rap (ou do movimento hip hop em sí) podemos ter relatos de uma outra visão da realidade e que geralmente está mais próxima dos alunos, principalmente de escolas públicas e de áreas periféricas. A análise do conteúdo das músicas em sala de aula trás a possibilidade de explicarmos a história e a relação social em que está inserida.
    Parabéns.
    Paulo Ricardo Vargas da Rocha Junior

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    1. Olá, Paulo, obrigado pelo seu comentário. Concordo com você, porém acrescento que entendo o "conteúdo" da música como tudo que a compõe e não somente as letras.

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  8. Olá Gabriel, gostei muito de teu texto e de tua análise. Tive uma experiência formidável em uma aula de artes com o som de Criolo, disso percebi que o universo do Rap é vivo no mundo rural, os meu alunos não conheciam o Criolo, mas conheciam o estilo. Partindo dessa ideia de conhecimento prévio do estilo pelos alunos, como você acha que podemos incluir no ensino?

    Dione Pereira Barbosa

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    1. Olá, Dione, obrigado pela sua questão. Penso que pode ser muito interessante a ideia de os alunos trazerem expressões para a sala de aula. Talvez seja esse o caminho, ou seja, professor e alunos trazendo arte para discutir em sala de aula, sem preconceitos de gênero musical.

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  9. Este comentário foi removido pelo autor.

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