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Eudes Marciel

FOTOGRAFIA E CONHECIMENTO: CAMINHOS PARA O ENSINO DE HISTÓRIA
Eudes Marciel Barros Guimarães
Dnt. em História – UNESP/Franca

Com a ampliação do campo da História desde os Annales – “a revolução francesa da historiografia”, segundo Peter Burke –, abriu-se a possibilidade de abordar questões e fontes até então colocadas em segundo plano na perspectiva dos metódicos oitocentistas. Mas somente por volta dos anos 1980, com as concepções formuladas no que se chamou de Nova História Cultural, as fontes visuais passaram a ser estudadas mais detidamente por historiadores, o que exigiu métodos específicos de investigação inspirados em áreas como a Antropologia e a História da Arte.
Ficou claro para os pesquisadores da “dimensão visual da cultura”, usando os termos de Ulpiano Bezerra de Meneses (2003), que o verbal e o visual constituem linguagens distintas e, portanto, não se pode reduzir uma a outra. Por conseguinte, ao estudar uma imagem, o historiador precisa de um instrumental próprio para interpretar os significados culturais nela impressos, articulando-a à experiência social do período que focaliza. Em vista das especificidades do visual, para além do próprio campo da História, formou-se uma área interdisciplinar denominada Cultura Visual (Visual Culture), com raízes nos Estados Unidos, cujo escopo consiste em investigar os modos de funcionamento das imagens visuais nos mais diferentes circuitos, tendo como principal ponto de interlocução a concepção de que a visualidade não se trata de uma reprodução ou “espelho” do real, mas de expressões culturais que instituem, participam e interagem na experiência social. Um panorama desses esforços pode ser lido na coletânea que reúne artigos e entrevistas dos nomes mais expressivos dessa área, organizada por Margaret Dikovitskaya (2005).
Quando nos detemos na história da cultura desde o século XIX, é inegável o papel da fotografia em novas formas de expressões artísticas, comunicação social e representações visuais em geral. No decorrer do século XX, com a popularização de câmeras portáteis, a fotografia passou a fazer parte do cotidiano das pessoas num mundo cada vez mais interligado. Há alguns anos, tenho me dedicado ao estudo das séries produzidas por dois fotógrafos franceses que percorreram o Brasil entre as décadas de 1940 e 1960. Pierre Verger e Marcel Gautherot viveram intensamente o clima cultural parisiense das décadas de 1920 e 1930, período em que se formaram como fotógrafos dentro de um circuito social de amplas dimensões de interesses: da arte à etnografia, da arquitetura à política. Verger e Gautherot são, portanto, profissionais cujo trabalho fotográfico esteve pautado na dimensão documental e na perspectiva etnográfica.
Pensando nos avanços dos estudos visuais nas pesquisas acadêmicas, sinto que seria profícuo um diálogo mais estreito com a História ensinada nas escolas. Desse modo, neste 3º Simpósio Eletrônico Internacional de Ensino de História, parece-me oportuno encaminhar uma possibilidade de abordar imagens fotográficas nas aulas de História do ensino básico, mais especificamente no Ensino Médio. Não é o caso, neste momento, de propor qualquer tipo de manual metodológico, tampouco de fazer um estudo exaustivo de uma problemática. Por meio de um tema que escolhi a partir do que pesquiso, o meu objetivo consiste em elaborar caminhos possíveis para uma discussão fecunda em sala de aula, de modo que a fotografia esteja presente não como mera ilustração do conteúdo, mas como partícipe na construção do conhecimento histórico tanto do tema que ela diz respeito quanto na interpretação mais dimensionada desse tema.
Ao estudar a representação do sertão brasileiro entre as décadas de 1940 e 1960, dois espaços na geografia nacional ganham um enorme peso simbólico. O primeiro deles é Canudos, lugar de memória de um evento que levou à aniquilação de uma cidade inteira e colocou em xeque a República recém-instaurada. O segundo espaço é Brasília, a capital que estava sendo construída no coração do Brasil, cuja monumentalidade moderna espelhava o futuro grandioso que se projetava para o país. Ocorre que em 1946, Pierre Verger registrou diversas imagens da região de Canudos, no momento em que se completava o cinquentenário da guerra. Suas fotografias foram publicadas na revista O Cruzeiro, acompanhadas de textos de Odorico Tavares. Anos depois, na medida em que avançava a construção de Brasília, Marcel Gautherot foi contratado como fotógrafo oficial da nova capital, em conformidade com as expectativas de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. As fotografias de Gautherot ganharam importância em exposições e revistas nacionais e internacionais.
Nessas imagens de Canudos e Brasília – metonímias dos sertões do país –, há uma relação simbólica entre passado e futuro: Canudos representando o passado do sertão como ruínas a serem superadas; Brasília representando o futuro do sertão como um projeto moderno monumental, o ponto de integração de um imenso território. Ironicamente, ambos os lugares reuniram gentes de diversas origens regionais, que tinham como principal objetivo a construção de uma vida possível e menos precária em meio às misérias e perspectivas que caracterizaram cada um desses períodos.
Em Canudos, Pierre Verger privilegiou rostos de idosos, lugares e objetos que remetiam à guerra. É interessante, como forma de comparação, propor um diálogo dessas fotografias de 1946 com os registros feitos por Flávio de Barros no calor do conflito. Barros privilegiou a empreitada militar, com ângulos e poses que heroicizam os soldados. A paisagem, nesse sentido, configura o atributo épico da luta da “civilização contra a barbárie”, como se imaginou nos jornais da época. Em Brasília, Marcel Gautherot, por sua vez, privilegiou a dimensão monumental do centro cívico e a composição estética da paisagem urbana moderna por meio das sombras projetadas pelas ferragens, estruturas de concreto, vidros e os corpos de trabalhadores. Por outro lado, não deixou de registrar os candangos que se agrupavam nos arredores da nova capital, cujas fotografias revelam a extrema pobreza de quem estava completamente à margem do poder. Um número significativo dessas imagens fotográficas pode ser facilmente encontrado nos acervos virtuais da Brasiliana Fotográfica, da Fundação Pierre Verger e do Instituto Moreira Salles.
Imagino como seria interessante uma aula em que a representação do sertão brasileiro fosse abordado a partir das imagens de Flávio de Barros, Pierre Verger e Marcel Gautherot. Para o embasamento do professor disposto a elaborar tal aula (que pode, evidentemente, se desdobrar em outras aulas), há uma bibliografia recente que se ancora nos estudos da Cultura Visual a que me referi no início deste texto. Uma interpretação mais sistematizada das fotografias de Flávio de Barros foi feita por Natalia Brizuela (2012) que, a partir da ideia de “sertão à margem da história”, toma os registros de Barros e os textos de Euclides da Cunha como documentos que elaboram o imaginário das ruínas como códigos para se pensar a própria história do Brasil. Antonio Fernando de Araújo Sá (2010), por sua vez, assina um artigo intitulado O sertão de Pierre Verger, em que estuda as imagens publicadas na revista O Cruzeiro. No âmbito da documentação visual de Brasília, há o excelente livro de Heloísa Espada (2012), que resultou de sua tese de doutorado sobre a representação do centro cívico por Gautherot. Por fim, para ampliar essas questões e estabelecer um diálogo mais facundo, cabe destacar um texto de Nicolau Sevcenko (2000) em que ele elabora uma relação direta entre Canudos e Brasília para compreender aspectos importantes da história do Brasil republicano.
Como afirmei no início deste texto, nos estudos da cultura visual, as imagens, sobretudo a fotografia, não devem ser tomadas como “espelhos” do real, tampouco como meras ilustrações de conteúdos didáticos. Elas criam, instituem, participam e interagem nas experiências das sociedades. Assim, se a pesquisa acadêmica tem avançado na construção de metodologias mais sofisticadas, o ensino básico de História pode se tornar ainda mais fecundo ao levar em conta esses avanços e adaptá-los ao funcionamento das aulas. Há de se aprender a ler e interpretar imagens e seus funcionamentos distintos dos textos verbais. Concluo lembrando o que disse, uma vez, o fotógrafo americano Lewis Hine: “se eu pudesse contar uma história em palavras, não precisaria carregar uma câmera” (apud SONTAG, 2004, p.201).

Referências bibliográficas:
BRIZUELA, Natalia. Fotografia e império: paisagens para um Brasil moderno. Trad. Marcos Bagno. São Paulo: Companhia das Letras; IMS, 2012.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a revolução francesa da historiografia. Trad. Nilo Odalia. São Paulo: Ed. da Unesp, 1997.
DIKOVITSKAYA, Margaret (org.). Visual Culture: the study of the visual after the Cultural Turn. Massachusetts: MIT Press, 2005.
ESPADA, Heloísa. Monumentalidade e sombra: o centro cívico de Brasília por Marcel Gautherot. São Paulo: Annablume, 2016.
MENESES, Ulpiano Bezerra de. Fontes visuais, cultura visual, História visual: balanço provisório, propostas cautelares. In: Revista Brasileira de História, v. 23, n. 45, 2003, p. 11-36.
SÁ, Antônio Fernando de Araújo. O sertão de Pierre Verger. In: Projeto História, n. 40, jul. 2010, p. 357-391.
SEVCENKO, Nicolau. Peregrinations, visions and the city: from canudos to Brasília, the backlands become the city and the city becomes the backlands. In: SCHELLING, Vivian (org.). Through the kaleidoscope: the experience of modernity in Latin America. New York: Verso, 2000, p. 75-107.

SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

7 comentários:

  1. Prezado Eudes, ao propor caminhos possíveis para uma discussão fecunda a respeito da fotografia em sala de aula, qual conceito de representação você considera pertinente nesse processo?
    Clara Zandomenico Malverdes

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  2. Prezada Clara, grato pela questão.
    De fato, ao pensarmos a fotografia como objeto de análise, a noção de representação torna-se quase que incontornável. Nesse sentido, em sala de aula, ao tratar a imagem como representação (se pensarmos no vínculo com um referente empírico), importa questionar sua íntima relação com instituições e esferas de poder. Ou seja, quais jogos de visibilidade e invisibilidade estão em questão? Qual discurso que a representação visual potencializa? No entanto, conforme tentei propor, acho bastante complicado reduzir as fotografias (e as imagens em geral) a meras representações. Essa noção em si mesma é problemática, porque pressupõe um nexo com a realidade, quando, na verdade, a fotografia, uma vez que passa a existir, torna-se uma outra coisa, uma criação cultural, e não uma reprodução de uma realidade primeira. Nesse caso, importa mais tratar das imagens fotográficas dentro de práticas sociais, que ganham e perdem significados em determinados circuitos sociais e períodos históricos.
    Eudes Marciel Barros Guimarães

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  3. Prezado Eudes, parabéns pelo texto, agradável e bastante útil, me senti bastante incentivada a usar a fotografia na sala aula. Com relação a esse recurso, como você mencionou “as imagens, sobretudo a fotografia, não devem ser tomadas como “espelhos” do real, tampouco como meras ilustrações de conteúdos didáticos.” Nesse sentido, na sua opinião teria de se pensar um “novo” jeito de olhar determinadas fotografias? Um modo de “aprender a ver”? Considerando que no cotidiano temos acesso a um número grande e variado de imagens e fotografias.
    Obrigada.
    Maurina Lima Silva

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    1. Eudes Marciel Barros Guimarães4 de abril de 2017 às 16:19

      Prezada Maurina, obrigado pela pergunta, a propósito, bastante pertinente e bem elaborada. Como você disse, nosso acesso cotidiano às imagens fotográficas é gigantesco, incontornável. Olhamos, ou somos condicionados a olhar, irrefletidamente para a maior parte delas. É por isso que a sala de aula pode se tornar uma espécie de laboratório onde podemos repensar a nossa própria visão como categoria perceptiva e como janela de construção do conhecimento do mundo. Primeiro é importante que haja uma boa seleção de fotografias feita pelo professor relacionada a determinado tema que se deseja discutir. Daí para a análise crítica das representações (como essas imagens constroem determinadas versões de eventos) que nelas se elaboram - uma análise que questione as esperas de poder e as instituições, conforme afirmei no comentário anterior. O passo seguinte é perceber os lugares em que essas imagens circularam ou circulam e os sentidos sociais que a elas foram atribuídos. "Aprender a ver" significa treinar a visão para não reificar ou naturalizar determinadas construções visuais.
      Eudes Marciel Barros Guimarães.

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  4. Prezado Eudes Marciel,
    Tenho duas perguntas:
    1. Já que você falou de duas cidades que representam Sertões, o que você acha de ampliar o debate que você propõe com a obra de Durval Muniz de Albuquerque Junior "A invenção do Nordeste e outras artes"?

    2. Que sugestões você daria para abordar fotografias na sala de aula?

    Obrigado.

    Prof. Airton Fernandes de Matos Filho.

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  5. Eudes Marciel Barros Guimarães7 de abril de 2017 às 14:59

    Olá, Airton. No meu trabalho de pesquisa de doutorado, que tem um escopo bem mais extenso, de modo a interpretar os sertões em sua multiplicidade, o livro "A invenção do Nordeste e outras artes", do Durval Muniz de Albuquerque Jr., tem uma grande relevância. Obrigado por destacá-lo aqui.
    Sobre a segunda questão, veja a resposta que dei à questão de Maurina Lima Silva, em que eu digo basicamente que a abordagem da fotografia em sala de aula deve ser feita de modo bastante articulado com o tema selecionado pelo professor, bem como deve haver a seleção criteriosa das imagens e o conhecimento prévio sobre cada uma delas, especialmente sobre os espaços em que elas estiveram vinculadas e os circuitos por onde passaram. Esse planejamento torna-se fundamental para que a aula não fique somente no campo especulativo.

    Eudes Marciel Barros Guimarães

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