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Erick Vargas

EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO ARQUIVO PÚBLICO DO RS: MEMÓRIA, JUSTIÇA E ENSINO DE HISTÓRIA
Erick Vargas da Silva
Mnt. História UFRGS

Neste trabalho buscaremos apontar aspectos do diálogo possível (e necessário) entre o ensino de História e a Educação Patrimonial, a partir das reflexões decorrentes da experiência da oficina “Resistência em Arquivo: Patrimônio, Ditadura e Direitos Humanos”, desenvolvida no Arquivo Público do Estado do RS (APERS).
A oficina “Resistência em Arquivo” se insere no esforço que recentemente a APERS tem desenvolvido na realização de oficinas de educação para o patrimônio, sendo esta oferecida desde setembro de 2013. Esta oficina nos permite refletir sobre as potencialidades no trabalho conjunto entre ensino de história e a educação patrimonial. Ao trazer documentos que trazem histórias de personagens que foram vítimas da violência de estado praticadas durante o período da Ditadura civil-militar de 1964, a oficina permite uma aproximação e da materialidade a este período histórico para um conjunto de estudantes do ensino médio.
Em uma temática como a do ensino sobre a ditadura, levantam-se questões sobre a pertinência do uso da memória no ensino de História, sobre a relação entre o direito a memória e o ensino e sobre como estas dimensões seriam indissociáveis do conceito de Justiça. Como incorporar e trabalhar com alguns destes aspectos, na prática de ensino de História em educação básica, é um desafio que está colocado e que buscaremos apontar alguns de seus elementos.

A Educação Patrimonial no espaço do Arquivo Público do RS
A fundação da APERS data de 1906 e levaria pouco mais de um século para que viesse a se abrir para a realização de ações educativas, através de uma parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) a partir de 2008. Esta recente abertura da APERS para as ações educativas representa uma importante mudança no perfil da própria instituição, que corrobora para uma alteração do papel desempenhado pelos Arquivos Públicos no país. “As ações educativas ainda representam uma atividade que se desenvolve na menor parcela dos arquivos públicos brasileiros.” (RIBEIRO; TORRE, 2012, p.67). Lacuna que talvez ajude a explicar o certo distanciamento colocado entre tais instituições e a população em geral.
Romper com o distanciamento entre as instituições patrimoniais e a sociedade é um caminho muitas vezes tortuoso e sujeito a diversos percalços. Esta distância não ocorre apenas devido a ações e escolhas pontuais e arbitrárias de determinadas instituições, mas se inserem em largos processos de distanciamento entre o popular e o patrimonial, como reconhece o próprio IPHAN, que “(...) nem sempre a população se identifica ou se vê no conjunto do que é reconhecido oficialmente como patrimônio cultural nacional.” (2014, p.20). Entre as alternativas e políticas decorrentes para a alteração desta situação, que não adentraremos por escapar ao espaço do presente trabalho, as ações educativas mostram-se como um instrumento valioso de aproximação junto a comunidade. “Cultivar a relação entre esses dois polos – acervo e comunidade –, fortalecendo os elos de pertencimento e de identidade, pode contribuir para a atribuição de valor simbólico aos arquivos e para a ampliação do entendimento da noção de cidadania dos consulentes.” (RIBEIRO; TORRE, 2012, p.74)
Atualmente são desenvolvidas três oficinas de educação patrimonial na APERS, destinada para públicos específicos. A oficina “Os Tesouros da Família Arquivo”, voltada aos alunos do 6º e 7º anos do Ensino Fundamental; a “Desvendando o Arquivo Público: historiador por um dia” para os 8º e 9º anos do Ensino Fundamental e a “Resistência em Arquivo: Patrimônio, Ditadura e Direitos Humanos” para estudantes do Ensino Médio e de Educação de Jovens e Adultos (EJA). Esta última foi escolhida como objeto do presente artigo por entendermos que ela possibilita abordarmos uma questão sensível e pertinente ao ensino de História que é a temática da Ditadura civil-militar e a sua relação com os temas da memória e justiça.

A ditadura de 1964: direito a memória e a justiça
O tema do golpe de 1964 e o regime ditatorial que segui-se até o ano de 1985, tem ganhado no último período uma importante visibilidade na sociedade como um todo. Ao se completarem os 50 anos do golpe neste ano de 2014, suscitou-se um importante debate sobre a memória destes acontecimentos e a busca por justiça as violações praticadas pelo regime ditatorial. Ao longo dos últimos anos, diversos atores da sociedade civil têm pressionado o Estado brasileiro em busca de reparações e reconhecimento, fomentando um maior ativismo social em torno do tema. A memória como um objeto de luta de movimentos sociais se faz cada vez mais presente, como podemos observar nas mobilizações em diversos pontos do país para alteração de nomes de lugares e espaços públicos que prestam homenagens a agentes da ditadura. A instalação da Comissão Nacional da Verdade, em 16 de maio de 2012, ainda que com seus limites de atuação, representou um importante avanço no reconhecimento do Estado sobre a necessidade de um ajuste de contas entre a verdade e a memória em nosso país.
Tomando os devidos reparos e cautela, esse novo ambiente, de alguma forma faz emergir uma revigorada noção de “dever de memória” ou “direito a memória” - conceito talvez mais adequado a realidade brasileira - onde a memória deve se articular a noção de justiça.
A afirmação do dever de memória, nos dias de hoje, remete, portanto, à ideia de que cada grupo social, em outro tempo vítima, e hoje herdeiro da dor, pode reivindicar a celebração de seus mártires e heróis, bem como o reconhecimento pelo dano sofrido e uma forma de reparação. Nesse sentido, defender o dever de memória é afirmar a obrigação que tem um país de reconhecer o sofrimento vivido por certas categorias da população, sobretudo na medida em que o Estado tem responsabilidade nesse sofrimento. (HEYMANN, 2006, p.7)
Se é um fato que inegavelmente muito se avançou no Brasil nestes últimos anos, ainda temos um longo percurso a ser trilhado para romper com certos “esquecimentos”, sejam eles deliberados ou involuntários. O direito a memória e a justiça se apresentam como uma questão inconclusa na sociedade brasileira, “a evocação pública dessa memória não remete a uma obrigação socialmente compartilhada" (HEYMANN, 2006, p.21), sendo este um embate que ainda seguirá na “ordem do dia” no debate público. O ensino de História pode e deve ser pensado incorporando criticamente esta problemática. Possibilitando a docência em História ganhar uma importante dimensão reflexiva ao empreender um esforço de ligar a prática educativa ao debate da memória.

O uso da memória e o ensino de História
Refletir o ensino de História e o uso da memória pressupõe escolhas e posturas por parte do professor. Se como apontou Nora, "a memória é um tipo de justiça", o professor de História deveria empreender este esforço em sua prática docente, pois "hoje em dia, a História deve proporcionar o conhecimento, mas a memória dá o significado." (NORA,2009, p.9). O que pode decorrer desta noção uma perspectiva de complementariedade entre a História e o uso da memória. As opções efetuadas pelo docente na busca por significados se dá em condições que envolvem uma tensão entre a História e o uso da memória. As fronteiras que delimitam os espaços de cada uma destas dimensões nem sempre são nítidas e pacíficas.
A utilização da memória no ensino de História pressupõe certos cuidados com relação ao papel que cada uma ocupa. “Se a memória propicia o reconhecimento, é necessário admitir que a história se faz no conhecimento. Sem as interferências da história, a memória costuma transformar o temporal em eterno, o sentimento em ressentimento.” (RAMOS, 2010, p.407). O professor de História, assim, deve ter a cautela de não se utilizar da memória descolada dos conhecimentos históricos, do aporte conceitual e metodológico que propicie uma perspectiva problematizadora, que a situe em processos históricos mais amplos.
Memória e justiça são questões que se apresentam de maneira indissociáveis no ensino de História sobre o tema da Ditadura de Segurança Nacional. Se por um lado temos hoje uma maior visibilidade ao tema, como mencionado acima, e inúmeras pesquisas a fornecerem valiosos instrumentos para uma melhor compreensão do período por parte do docente, por outro, “há inúmeras lacunas na implementação de políticas de memória mais amplas”, que deem conta da superar uma série de desafios postos no campo do ensino, como por exemplo, “a falta de diretrizes específicas para a inserção destas temáticas na escola e a produção de materiais didáticos que venham a instrumentalizar os professores para a sua abordagem em sala de aula.” (PADRÓS; GASPAROTTO; ASSUMPÇÃO, 2013, p.45).
Nesta perspectiva, buscando contornar a tensão entre o ofício da História e a memória, preenchendo algumas das lacunas para a prática de ensino, que se coloca a importância das Ações Educativas para o ensino de História na educação básica.

A oficina como espaço de aproximação entre memória e ensino de História
O uso eficaz de instrumentos de memória na prática de ensino de História podem possibilitar pontes entre o passado e o presente no processo educativo. Processo que envolve diversos fatores, aos quais podemos destacar desde a problematização das fontes a serem escolhidas para a ação educativa, onde deve se operar um esforço de aproximação entre os objetos de memória e o estudante. “Os acervos documentais, como parte do patrimônio cultural de uma dada coletividade, não podem ser desvinculados desses sujeitos nos projetos educativos.” (RIBEIRO; TORRE, 2012, p.74).
A oficina “Resistência em Arquivo” utiliza-se como objeto de memória processos administrativos gerados durante os trabalhos da Comissão Especial de Indenização, criada em 1997 para avaliar pedidos de indenização financeira de ex-presos políticos durante o período ditatorial. Entre os cerca de 1.704 processos recolhidos na APERS, foram selecionados seis que buscaram compor um panorama das diferentes vítimas do regime: Eloy Martins (dirigente do PCB, vitima da ditaduras do Estado Novo e de pós-1964), Emilio Neme (militar ligado a Leonel Brizola perseguido pelo regime), Alcides Kitzmann (agricultor do interior do RS que teve a família vítima de torturas), Cláudio Gutierrez (militante do movimento estudantil e preso político), Ignes Serpa e Nilce Azevedo (mulheres militantes de esquerda vitimas de torturas). Ao dar um rosto, um nome, uma trajetória, a oficina aproxima e da materialidade a este período histórico para os estudantes.
Em sua metodologia, a oficina “Resistência” estimula um envolvimento prévio do professor junto a turma, com o envio de um texto elaborado pela equipe do projeto, que busca instigar e introduzir o tema para a turma antes da visita ao APERS. Organizada em diferentes etapas, em sua maioria com um envolvimento direto dos estudantes nas atividades, a oficina permite que o conjunto da turma tenha contato não apenas com os diferentes personagens apresentados nas “caixas educativas”, mas em seu conjunto, possibilitam uma associação entre a memória e a história do período.  O que se comprova pela reação dos alunos, que combina reações que vão desde a surpresa frente a situações até então desconhecida por eles indo até mesmo uma identificação com as histórias e trajetórias dos personagens apresentados.
As questões, problemas e os diferentes saberes estimulados e levantados pela oficina, permitem estabelecer uma relação entre a História, direito a memória, justiça e verdade. A continuidade destas discussões em sala de aula possibilitariam o aprofundamento de uma série de questões relevantes para uma enriquecida compreensão crítica do período. Atividades que busquem complementar ou aprofundar alguns aspectos do período – a censura, a violação dos direitos humanos, as “heranças” da ditadura nos dias de hoje, etc -  poderia ser um bom caminho a ser trilhado. “A história serve para que se perceba o ser do presente como devir, como parte de um processo marcado por rupturas e descontinuidades, mas também por continuidades e permanências.” (JUNIOR, 2012, p.31).
O ensino de História, associado a ações de educação patrimonial, pode viabilizar um enriquecido uso da memória em sala de aula. Operando uma aproximação da escola com outros espaços de saberes, conferindo ao ensino uma maior amplitude. “A escola como instituição fechada em si, que transmitia saberes para uma escola que se coloca em diálogo com outros espaços de educação” (GIL, 2013, p.160)

Conclusões
A experiência da oficina “Resistência em Arquivo” da APERS nos permitiu observar algumas das múltiplas potencialidades do ensino de História associado a educação patrimonial, área que possivelmente poderemos ainda ampliar significativamente seu alcance e abrangência. Esta nossa breve experiência apontou para uma nítida sensibilização dos alunos participantes da oficina sobre o tema. O contato do estudante com espaços de preservação da memória, possibilitam que a experiência educativa incorpore uma gama maior de elementos. As questões relacionadas a memória e justiça se apresentam, a nosso ver, de maneira indissociável no ensino de História sobre a temática (mas não apenas) da ditadura civil-militar.
O direito a memória e a justiça, para o docente de História se inscreve no próprio  compromisso ético a ser assumido no ofício de historiador.  Como apontava Benjamin, “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” (2009, p.68). Superando uma história dos “vencedores” e dos grandes feitos, que incorpore aqueles que resistiram, o Historiador restabelece o direito a memória aos “vencidos” pela “marcha da história”. Onde se busca despertar em elementos do passado as “centelhas da esperança” que podem incendiar a “pólvora” no presente, trazendo assim a dimensão da justiça a memória e a História.

Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Conceptos de filosofía de la historia. Buenos Aires: Terramar, 2009.
GIL, Carmem Zeli de Vargas. Patrimônio Cultural e ensino de história: reflexões sobre a remoção de uma vila de classes populares. In: GASPAROTTO, A. et al. Ensino de história no CONESUL: Patrimônio cultural, territórios e fronteiras.  Jaguarão: Evangraf, 2013.
HEYMANN, Luciana. O "devoir de mémoire" na França contemporânea: entre a memória, história, legislação e direitos. Rio de Janeiro: CPDOC, 2006.
IPHAN. Educação Patrimonial : histórico, conceitos e processos. 2014
JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. Fazer defeitos nas memórias: para que serve o ensino e a escrita de história? In: ROCHA, Helenice; REZNIK, Luís; MONTEIRO, Ana Maria. Qual o valor da História hoje?. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
RAMOS, Francisco Régis Lopes. Uma questão de tempo: os usos da memória nas aulas de história. In: Cadernos Cedes, vol.30, nº82. Campinas: Unicamp, 2010.
RIBEIRO, Raphael Rajão e TORRE, Michelle Márcia Cobra. Diálogos com a Educação Patrimonial e o Ensino de História em Instituições Arquivísticas: ações educativas no Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte. Revista Acervo do Arquivo Nacional Vol.25, nº1. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2012
NORA, Pierre. Memória: da liberdade à tirania. In: MUSAS. Revista Brasileira de Museus e Museologia, nº4. Rio de Janeiro: IBRAM, 2009.

PADRÓS, Enrique Serra, GASPAROTTO, Alessandra e ASSUMPÇÃO, Marla. Ditaduras civil-militares do Cone Sul: experiências de trabalho e práticas para a sala de aula. In: GASPAROTTO, A. et al. Ensino de história no CONESUL: Patrimônio cultural, territórios e fronteiras.  Jaguarão: Evangraf, 2013.

Um comentário:

  1. Gostei muito da proposta da oficina. Houve alguma atividade com os estudantes após a oficina? Eles elaboraram algum produto?
    atenciosamente,
    Rafaela Albergaria Mello

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