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A CAPOEIRA COMO POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA LEI 10.639/03
Denis Henrique Fiuza
Mnt. História UNICENTRO

Segundo o parecer 003/2004, a demanda da comunidade afro-brasileira por reconhecimento, valorização e afirmação de direitos, no que diz respeito à educação, passou a ser particularmente apoiada com a promulgação da Lei 10639/2003, que alterou a Lei 9394/1996, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas. Nesse sentido, propomos a utilização da capoeira, nos estabelecimentos de ensino, como proposta de aplicação da Lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica.
O parecer 003/2004 aponta para a “necessidade de diretrizes que orientem a formulação de projetos empenhados na valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos”, pois, qualquer lei precisa de instrumentos que favoreçam a sua prática e que estimulem bons resultados. Nesse sentido, propomos a prática da capoeira como elemento essencial para que essa lei seja popularizada e colocada em prática.
A capoeira nasceu no Brasil através dos negros trazidos do continente africano para serem escravizados, e era usada como forma de defesa contra opressão política, econômica e social, imposta pelo regime político. Ao longo dos séculos ela foi se transformando e se constituindo como um elemento genuíno da cultura afro-brasileira, expressão clara da reconstrução histórica da identidade africana no país. Diferentes estudos demonstram que ela é um elemento identitário com conteúdos educativos, socioculturais e de promoção da saúde física e psicomotora.
Levar a capoeira para a sala de aula é uma forma de apresentar diferentes perspectivas culturais e étnicas, abordando aspectos da cultura africana e afro-brasileira. Segundo o mestre Valmir, “estamos falando da nossa cultura, da nossa realidade, da nossa ancestralidade. E muitas vezes isso nos foi tirado dentro da própria sala de aula ou material didático”, nesse sentido, a utilização da capoeira instiga a reflexão como um elemento de resistência utilizado frente à escravidão e demais características da atuação dos negros na história do Brasil (ALMEIDA, PIMENTA E CYPRIANO, 2009, p. 65).
Sendo assim, destacamos essas duas premissas, a prática da capoeira enquanto proposição para pensar a aprendizagem e o ensino de história e da cultura afro-brasileira. Uma das características da capoeira é o ensino, principalmente a partir da relação mestre e aprendiz, sendo que ela chega aos dias de hoje como o resultado do trabalho de ensinar de vários mestres, que além de propagá-la, buscaram ensiná-la a partir da vivência de seus princípios, espiritualidade e ética.
A prática da capoeira envolve diferentes elementos de criação e invenção, além disso, é unanime entre os pesquisadores da área que sua prática contribui para o desenvolvimento dos seres humanos, a partir do aperfeiçoamento do movimento, do intelecto e do afeto. Segundo Alvez (2011, p. 21), “a utilização da capoeira na educação, enfatiza a história, a música, a arte e o jogo, como elementos que proporcionam o desenvolvimento emocional, afetivo e motor, trazendo uma efetiva possibilidade educacional”.
Entretanto, a utilização da capoeira na educação deve ir além da concepção de um uso simplista “como elemento folclórico”, como algo exótico, mas, deve favorecer a reflexão das estruturas tradicionais que muitas vezes não contribuem para o desenvolvimento das habilidades e potencialidades dos estudantes, trazendo elementos como a diferente concepção de tempo da capoeira expressos pela “vadiação” e pelo tempo da “brincadeira e da malandragem”, pela “reelaboração” de sí mesmo, pois essa prática inspira o sujeito a “inventar a si mesmo” (ALVES, 2011, p. 28).
A noção de temporalidade, nesse sentido, vai além daquela cronológica adotada tradicionalmente nos sistemas educacionais, e estimula os capoeiristas a “mergulhar de cabeça” nessa prática. A prática da “vadiagem”, embora tenha recebido uma conotação negativa, faz referência a uma dedicação de tempo e de vontade aos rituais e práticas da capoeira. Nesse sentido, a valorização de outras temporalidades na educação, na execução de projetos científicos e culturais demanda tempo para que haja dedicação na realização e em especial, o diálogo, as trocas de experiências, a reflexão com profundidade.
Outro elemento importante na capoeira é a música. A utilização de instrumentos musicais é essencial nessa prática, eles colaboram para que os indivíduos entrem no clima da roda, para a eficácia da meditação e contemplação dos movimentos e para a comunhão entre os participantes. A música funciona como estimulo, mas principalmente como um elemento que “atenua a monitoria consciente” que resulta numa percepção mais aguçada, como destaca Alves (2011, p. 186), levando os participantes a uma atuação consciente de suas potencialidades, instalando essa temporalidade da “vadiação” de dedicação ao que estão fazendo.
Destacamos também na prática da capoeira, a relação mestre x aprendiz, ela os apresenta como aliados na construção de um processo, como indivíduos que aprendem junto, “que constroem juntos o conhecimento” da capoeira. O papel educacional da capoeira está também relacionado com o significado da identificação, quer dizer, identificar as características afro-brasileiras e africanas e seus elementos ritualizados e refletir sobre os mesmos na escola, da mesma forma como se aborda a contribuição de outras etnias. Ainda mais, ela tem a missão de educar as pessoas sobre a importância de conhecer e assumir sua verdadeira identidade étnica e desconstruir o preconceito racial intrínseco na sociedade.
Sendo assim, apresentamos alguns traços da trajetória histórica da capoeira, sua força de resistência contra a escravidão e como uma expressão da várias que constituem as identidades étnicas de origem africana. Além disso, demonstramos que a utilização da mesma na educação possibilita um avanço na inclusão e a valorização da contribuição dos negros na construção do país. Ademais, propomos a utilização da capoeira como instrumento para desenvolver o ensino e a aprendizagem dos estudantes. A capoeira com sua técnica, seus elementos rituais, a música, o tempo da vadiação, e outros aspectos, coloca o indivíduo em perpetuo estado de desenvolvimento psicomotor.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Rodrigo de; CYPRIANO, André; PIMENTA, Leticia. Capoeira: luta, dança e jogo da liberdade. São Paulo: AORI, 2009.
ALVES, Flávio Soares. O Corpo em Movimento na Capoeira. 2011. 194 f. Tese (doutorado) – Escola de Educação Física e Esportes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Lei 10.639/03. Inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura AfroBrasileira”. Diário Oficial da União, Poder Executivo. Brasília, DF, em 10 de mar.2003. Disponível em <http://www.planalto.gov.br>

BRASIL. Parecer técnico nº: CNE/CP 003/2004 Colegiado: Conselho Pleno aprovado em: 03/10/2004. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Racionais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. Disponível em <www.portal.mec.gov.br>

7 comentários:

  1. Olá. Bom dia!
    Muito interessante o seu texto a cerca da capoeira, enfatizando a importância de sua inserção no espaço escolar. Mesmo tendo uma Lei que assegure esses direitos, percebemos uma timidez quanto a sua prática, principalmente nas aulas de educação física. A seu ver, quais os motivos pelos quais não temos a prática da capoeira de forma mais intensa nos espaços escolar? JOSÉ FLÁBIO DOS SANTOS

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    2. Olá José, obrigado pela pergunta. Então, além da capoeira ser pouco utilizada para o ensino e aprendizagem na escola, quando ela é usada se destaca apenas seu viés artístico (dança) ou como uma luta. Mas, podemos explorá-la de forma mais profunda. Pensando, por exemplo, a relação mestreXaprendiz, diferente da tradicional que inferioriza o aluno como um receptor de conhecimento em relação ao professor que “transfere” o conteúdo. Além disso, a capoeira coloca seus participantes na vivência de outra temporalidade, em que esses são convidados a participar e a construir os saberes, com dedicação de tempo e de suas potencialidades. Ademais, a capoeira reflete os traços da cultura afro-brasileira e demonstra sua relevância, por isso, a pouca importância dada a esse prática se deve em parte ao racismo intrínseco em nossa sociedade, a supervalorização da cultura europeia e a inferiorização das culturas negra e indígena, e a falta de interesse das escolas e dos profissionais em relação a temáticas e metodologias voltadas para a cultura africana e afro-brasileira. Destaco, porém, que o número de professores e pesquisadores que se preocupam com a erradicação de práticas preconceituosas e racistas tem aumentado e muitos projetos já são realizados.

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  2. Olá Denis! Fiquei questionando se você possui mais informações sobre a LEI 10.639/03. Com a reforma do Ensino Médio houve alguma alteração nessa lei?

    Rodrigo dos Santos (Prof. UFFS/Laranjeiras do Sul)

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    1. A princípio, tanto a lei 10.639/2003 quanto o parecer 003/2004 continuam valendo. Entretanto, ela será prejudicada na medida que, com essa reforma o ensino de história e das demais disciplinas das ciências humanas serão, tendo seus currículos fragmentados e com ênfase reduzida.
      Denis Henrique Fiuza - Mestrando/Unicentro

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  4. Boa noite
    Parabéns pelo texto e pela clareza em sua escrita.
    Interessante a sua reflexão acerca da capoeira como instrumento de prática da Lei 10.639/03, todavia, poderia dizer se houve algum ocorrido no sentido contrário a sua preposição? Ou seja, verificou se na prática há alguma forma de discurso ou falas de cunho discriminatório no tocante as pessoas que praticam a capoeira? Digo isso não pelas crianças, as quais se observa uma motivação e atenção ao que é ensinado quando levamos a capoeira para a escola, mas, no sentido do corpo docente, entende? Sei que seu texto não entra nessa discussão, mas tenho curiosidade em pensar esse público, o qual muitas vezes nem participa, mas carrega alguns traços de resistência ao ensino ou discussões de elementos culturais africanos e afro-brasileiros..

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