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César Filipe

CINEMA E A SHOAH: ANÁLISES DE NIGHT AND FOG,THE PAWNBROKE E A MEMÓRIA DO MASSACRE
César Filipe Alves Barbosa da Silva
UPE

            Com a ascensão do partido nazista em 1933 a perseguição aos judeus iria piorar largamente em todo o país. As leis de Nuremberg foram um conjunto de leis baseadas em princípios raciais que em suma negavam aos Judeus sua participação na comunidade e estes perderam os direitos garantidos pelo estado a qualquer cidadão. Este conjunto de Leis entrou em vigor em 1935. Já a “Noite dos Cristais” ficou marcada pela extrema violência dirigida aos Judeus, e estes foram obrigados a sair da Alemanha, tiveram seus bens retirados, muitos foram mortes e um considerável número de feridos em maior e menor grau. Várias sinagogas foram queimadas e também comércios que pertenciam a Judeus foram depredados neste episódio. O ódio para com os Judeus tinha chegado a níveis ainda mais alarmantes e infelizmente, algo pior estava por vir (GUTMAN, 2003).
É importante esclarecer que a Shoah, o extermínio em massa de milhões de judeus não foi orquestrado e colocado em práticas por pessoas loucas, monstros ou demônios, já que sua crueldade e barbárie remete a isso, mas por homens comuns. Essa discussão é elucidada por Hannah Arendt em Eichmann em Jerusalém (1963), onde relata o julgamento do  principal homem do regime nazista a fazer a triagem de pessoas para os campos de concentração. Outra importante obra sobre essa discussão é Ordinary men (1992) de Browning Christopher, tendo o autor analisando o batalhão de policia 101, formado por pessoas comuns e as brutalidades que esses cometeram.
Como ferramenta utilizada em sala de aula para abordar incontáveis temas históricos e por isso muitas vezes usada de forma errada pelos educadores, os filmes podem levar a caminhos perigosos se não separado em seus aspectos e analisados de forma coerente por quem o utiliza na sala de aula. Um dos pioneiros na relação cinema/história, Marc Ferro nos diz: analisar no filme tanto a narrativa quanto o cenário, a escritura, as relações do filme com aquilo que não é filme: o autor, a produção, o público, a crítica, o regime de governo. Só assim se pode chegar à compreensão não apenas da obra, mas também da realidade que ela representa.” Dito isso, trabalhar com eventos traumáticos torna essa ferramenta bem mais complicada, já que as memórias desses acontecimentos podem ainda está viva nas vítimas ou em seus descendentes.
Theodor Adorno nos alerta em Educação após Auschwitz, quinto capitulo de Educação e Emancipação (1995), que o sistema educacional deve se preocupar devidamente com Auschwitz para que as atrocidades lá realizadas não venham a se repetir. Vimos e infelizmente vivemos em um período onde o fascismo está representado através de figuras influentes e também em indivíduos comuns e cabe a educação lembrar o que foi Auschwitz através do ensino deste nas escolas. Usar filmes que retratam a vítima e seus mais variados aspectos e assim ensinar através da memória individual e coletiva dos sobreviventes é de uma importância impar para o entendimento da Shoah e sua não repetição. Não só apresentar essas películas, mas discuti-las, pois o educador deve fazer as análises em sala baseado em autores renomados no assunto e esse também deve ter conhecimento de relatos de sobreviventes para um maior entendimento do ocorrido. Sem o conhecimento necessário, o educador irar falhar em tratar da memória dos sobreviventes e repetirá o discurso apresentado pelo filme e suas falhas.
Night and Fog (Alan Resnais, 1956) nos mostra o horror e a crueldade humana e narra como a sociedade civil foi importante no processo maligno feito nos campos de concentração. Sem a sociedade civil, Auschwitz nunca teria ocorrido. O processo de extermínio dos judeus foi tão marcante para o mundo por causa dos setores que apoiaram e colocaram a solução final e seus modos de operação. Construtoras disputando quem construiria os campos, empresas bélicas e químicas que testavam gazes em pessoas, a maldade que fazia o carrasco matar apenas para acabar com o tédio. Tudo isso só foi possível com o apoio da sociedade e usando o pretexto para ascender socialmente, militarmente e também lucrar com a morte de milhões e com esses fazer fortunas, pessoas foram exterminadas na máquina da morte nazista.
O documentário mostra um campo abandonado, sem seus antigos guardas e carrascos, sem seus deportados que aguardavam por um destino qualquer, pois a morte era certa. Ferrugens e a vegetação tomaram o lugar que antes era um local de morte, mas agora o esquecimento habitava os campos. Deixar que Auschwitz fosse esquecido é um crime contra os que ali morrer em vida e para os outros que morrem em alma. Aquela pequena “cidade” criada para ceifar vidas, onde mulheres eram exploradas sexualmente, onde médicos faziam experimentos crieis em pacientes, soldados que atiravam nos deportados por diversão. As perversidades de Auschwitz se esquecida, podem voltar a ocorrer. Vimos e infelizmente vivemos em um período onde o fascismo está representado através de figuras influentes e também em indivíduos comuns e cabe a educação lembrar o que foi Auschwitz através do ensino deste nas escolas.
Assistir aos 30 min de Night and Fog e dele ver que não há limites para a crueldade. A impotência de ver aquelas cenas e saber que não podemos fazer nada nos deixa com raiva, nos faz querer ir hoje a Europa e destruir todos os campos, preservados ou não, para que o vazio dentro no peito pare. Infelizmente fazer tal ato só iria deixar essa lacuna dentro de nós mais funda. Auschwitz não deveria ter existido, mas aconteceu e lá milhões foram mortos. Infelizmente é um fato. Destruir o que resta daqueles muros é destruir a memória, é destruir o horrendo aprendizado que tiramos desses locais.
Optamos por deixar The Pawnbroke (Sidney Lumet, 1964) por segundo e não por esse ser mais reflexível que o anterior, mas pela figura de Sol Nazerman (Rod Staiger) e como esse personagem que anteriormente foi uma vítima do fascismo, vítima de práticas horrendas onde esse homem perdeu seus filhos e esposa em um campo de extermínio. A perspectiva da vítima e como essa encarar suas dores, e essas acompanham o perseguem onde quer que ele vá. Esse personagem representa todas as vítimas que sofrem e perderam seus entes queridos, que sofrem por terem um pedaço da alma arrancada de dentro de si para alimentar o prazer sádico de seus.
The Pawnbroke dialoga com a relação da dor, memória e o esquecimento. Para muitos o passado ficou para traz e não é necessidade de voltar a vê-lo, mas as vítimas do regime opressor que por anos roubou, torturou, matou e desumanizou os rebaixando a pragas que deveriam ser exterminadas, para essas pessoas o passado jamais irar passar. O trauma dos campos, de ter vivido no inferno construído por homens não pode ser apagado com o tempo e é essa visão que nos é passada através da película. Se posicionar no lugar não só de Sol, mas também dos outros milhões que morrer e dos que por pouco não tiveram o mesmo destino é fundamental para entender a dor dessas pessoas. Não vamos poder sentir a dor das vítimas, mas cometer o erro e arquivar esse passado em gavetas escuras causa ainda mais dor para aqueles que muito já sofreram.
O filme de Sidney Lumet é bem pontual ao mostrar a figura da vítima, a figura dura e dolorosa do sobrevivente. Sol Nazerman tem suas expressões frias, sua pouca comunicação com outros personagens nos mostra quanto à dor ainda habita a alma daquele homem. A solidão do personagem que mesmo cercado em alguns momentos prefere ficar só, prefere não falar com os outros. The Pawnbroke quer nos deixar também a nossa responsabilidade de lembrar e não perpetuar doutrinas que no futuro podem levar outros a novos campos. A questão da memória e de como a sociedade ignora essa e a dor dos outros é gritante no filme. O ato de se virar contra o homem que explora mulheres e o dinheiro dessa pratica era lavado ilegalmente por Sol (No decorrer do filme ele descobre a origem do dinheiro sujo) se torna uma ponte para as suas dores antigas que ainda estavam bem vividas nele, pois sua mulher foi forçada a ser escrava sexual dentro do campo e sentir aquela dor o fez ver as dores das mulheres exploradas. Sol, a vítima infelizmente sentir a dor de ver alguém que ama ser usada, explorada e morta e por isso se revoltou contra o criminoso, ele sabia como era a dor. The Pawnbroke nos mostra a dor do passado, a dor de sofrer só, a dor de estar entre tantas pessoas, mas essas pouco ou nada se importam com seu sofrimento. Se Auschwitz continuar a ser facilmente esquecida, suas vítimas foram torturadas não só em sua estadia, mas também fora pelo esquecimento.

Referência bibliográfica
ADORNO, Theodor. W. Educação e Emancipação. IN: Educação após Auschwitz. Trad. Wolgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terro, 1995.
ANDREW, James Dudley. As principais teorias do cinema: Uma introdução/ J. Dudley Andrew; tradução, Teresa Ottoni – Rio de Janeiro: jorge Zahar Ed. 2002 
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. Um estudo sobre a banalidade do mal. São Paulo: companhia das Letras, 1998
BAUER, Yehuda. Reflexiones sobre el holocausto. Jerusalén: E. D. Z. Nativ Ediciones, 2013.
Browning R. Christopher. Ordinary men: Reserve police battalion 101 and the solution in poland. New York: Harper Perennial, 1992
FERRO, Marc. Cinema e História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. José Otávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago Ed, 1997.
GITZ, Ilton; PEREIRA, Nilton Mullet. Ensinando sobre o Holocausto na Escola. Porto Alegre: Penso, 2014.
GUTMAN, Israel. Holocausto y Memoria. Jerusalén: Centro Zalman Shazar de Historia Judia, 2003.
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história. Tradução de Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010

SEMELIN, Jaques. Purificar e destruir: Usos políticos dos massacres e dos genocídios. São Paulo: DIFEL, 2009.

4 comentários:

  1. Olá César,
    Uma boa introdução ao tema, esse seu texto. Mas atente a dois aspectos:
    1. Qual a relevância de se trabalhar, no Brasil, com o tema da Shoah?
    2. Como, efetivamente, usar esses filmes em sala de aula?

    O primeiro está tangencialmente respondido em seu próprio texto, mas dada sua relevância, acredito que você poderia discuti-lo mais, principalmente no contexto de crescente intolerância no qual vivemos.
    O segundo está ausente em seu texto, e seria fundamental que, como professor, você estabelecesse um modelo de utilização dos filmes.

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    1. Olá José Maria e Desculpe a demora para lhe responder.

      Você levantou duas questões importantes a cerca deste trabalho e discutindo sua primeira indagação, Norberto Bobbio em Dicionário de Política (1998) ao distinguir os extremismos entre a direita e a esquerda, traz na primeira, entre vários motivos para essas acenderem em sociedades está a perca de status, pois estes antes estavam em melhor posição e graças a crises financeiras e também de representatividade indivíduos se voltam ao extremo político como forma de reaver aquilo que “perderam”. Infelizmente estamos passando pela mesma situação. Responderei à questão observando o extremismo da direita, pois este tem características semelhantes à do fascismo e os atuais neofascista se veem a extrema direita, politicamente falando.
      A importância do ensino da Shoah se mostra cada vez mais importante em nossa realidade, já que os princípios fascistas estão em nossa sociedade (antes pensada como exemplo de “democracia racial”, quando nunca foi isso e estamos bem longe de ser algo assim), mas tendem a se mostrar em crises políticas e financeiras como a atual. Essa discussão tem uma importância impar em nosso meio, pois estamos no topo do ranked de países que mais mata gays, mulheres e negros no mundo. Estudar a Shoah no Brasil e ver sua gênese e seu horrendo resultado, com certeza vai ajudar a entender e anular essa raiz fascistas que está inserida em nosso meio. Achar que pessoas por escolher se relacionar com outras de mesmo sexo são inferiores, que mulher que “não se dá ao respeito” tem que ser estuprada, que a PM tem que matar mesmo na favela são faces de um passado o qual não demos importância e por isso ele sempre está batendo em nossa porta. A educação trata esse massacre como apenas um episódio da Segunda Grande Guerra, quando ela foi um acontecimento que merece ter um destaque maior.
      Dando nomes aos bois, o atual deputado federal, Jair Bolsonaro, tem sido a figura em destaque que representa o extremismo e a intolerância no país. Seu discurso alcança grande parte da sociedade e ele não é nada mais do que o velho fascismo que se torna “novo” em vozes atuais e o pior, grande parte do seu eleitorado (e também os futuros eleitores) são jovens que em sua maioria estão nos ensinos fundamental e médio. É por isso que a educação deve alertar sobre o fascismo e sobre o massacre que ele proporcionou no meio do século XX.



      A segunda questão é tão importante quanto a primeira e apesar de não ter aplicado em alguma escola (apliquei em pré-vestibular) eu a pensei de uma forma a qual seja mais fácil trabalhar educação e cinema. Como o tempo para trabalhar qualquer assunto em sala é curto e filmes tendem a durar duas horas ou mais, trazer películas que falam sobre a Shoah em sala não me pareceu tão efetivo, já que no que se refere ao absolver o que é mostrado é bem menor e por isso trabalhei com a indicação de filmes que não estão nesse trabalho (Ele está de volta, David Wnendt e Lore, Cate Shortland) para os alunos assistirem em casa trazendo resenhas e antes disso, explicando o fascismo europeu e o massacre. Notei que as discussões sobre o tema foram boas e o aprendizado em relação a Shoah fluiu bem. Inicie com Lore (2012) para discutir a responsabilidade da sociedade alemã em relação ao massacre e como parte dela nega que fez parte do processo e depois continuei com Ele Está de Volta (2015) para dialogar como o fascismo está entre nós e como ele pode ascender ao poder quando esquecemos de sua crueldade com o outro.



      Att, César Filipe

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  2. Olá César,
    Primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo texto, trabalhar a Shoah caracterizando a prática do extemínio dos judeus como criminosa,e não como loucura é de grande importância para a memória deste período.
    Gostaria de saber de que forma a Shoah é trabalhada por você em sala de aula: Como uma parte da Segunda Guerra Mundial, ou como um evento incluído na guerra, porém com suas particularidades e consequências próprias para a humanidade.

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    1. Olá Erivaldo.

      Sua pergunta foi excelente! Trabalhar com esse tema em sala de aula é complicado por sua peculiaridade em detalhes que chegam a assombrar por seus horrores e sua aplicação na sociedade europeia. Trabalhei a Shoah depois de falar sobre a segunda grande guerra e mesmo essa sendo parte dela, dei maior ênfase ao assunto por ter em sua composição a questão do resultado maléfico do facismo e a possibilidade de refletir esse tema com nosso atual período. Fazer reflexões com a turma destacando a Shoah da segunda guerra, claro, introduzido essa no assunto anterior é o melhor a se fazer quando analisamos esse massacre.

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