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Antonio José; Jane Adriana

EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: A LEI Nº 10.639/2003
Mr. Antonio José de Souza
Dr. Jane Adriana Vasconcelos Pacheco Rios
UNEB

No que se refere às relações étnico-raciais, a história e a educação sempre estiveram interligadas ao processo de negação e afirmação construídas para e pelos negros. Estes não fazendo parte do universo letrado não se resignaram com a exclusão que lhes foi imposta, organizando movimentos de resistência ao longo da história. Os negros conquistaram o direito ao trabalho livre, ao livre culto de suas religiões, de constituir família, de viver fora de tutelas. A luta, contudo, assentou-se pelo viés da autoafirmação e da honra de ser negro/a.
Durante o século XX, o Movimento Negro esteve à frente de significativas empreitadas que tiveram o propósito de tornar a sociedade brasileira mais justa. Foram várias ações que desembocaram na fundação, em outubro de 1931, da Frente Negra Brasileira (FNB), primeiro movimento social de massa, no período pós-abolicionista, que pretendia combater o racismo no Brasil, promovendo dignidade para a população negra.
Outra experiência relevante, que empreendeu esforços por uma educação de qualidade para os negros, foi o Teatro Experimental do Negro (TEN), que surgiu em 1944, no Rio de Janeiro, fundado e dirigido por Abdias do Nascimento. Nesse percurso, despontou, em 7 de julho de 1978, contrapondo-se à violência racial a qual eram expostos, o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU). O MNU e outras tantas experiências foram importantes para as lutas por uma educação que funcionasse como instrumento de promoção da dignidade humana, atentos às demandas da população negra e ao combate às desigualdades sociais e raciais, no decorrer do século XX.
Nesse momento em que a cultura de direitos se ampliava para uma Cultura de Direitos Humanos, o Movimento Negro reclamava pela igualdade básica de pessoa humana, como sujeito de direitos, a partir da compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, possuidores de cultura e história próprias, igualmente dignas e que, em conjunto, construíram a nação Brasil. Por isso merecem a valorização da memória identitária dos seus povos, na composição histórica e cultural brasileira, superando a desqualificação com que as classes populares às quais os negros, no geral, pertencem, são comumente tratadas.
Sendo assim, a educação formal estabelecia-se como um marco no panorama das reivindicações do Movimento Negro, constando na pauta de suas lutas os esforços em denunciar a carência de diretrizes que objetivassem a formulação de projetos comprometidos com a valorização da história e cultura dos afro-brasileiros e dos africanos, como também propusessem o envolvimento com as práticas pedagógicas, a partir das relações étnico-raciais positivas a que tais conteúdos deveriam encaminhar.
Coerentemente com o protagonismo negro no cenário político e em suas estratégias de promover uma educação antirracista, o Estado brasileiro vem formulando ações, no sentido de valorizar a cultura dos negros, assinalando um quadro de intenções que visa a erradicação do racismo e da discriminação.
Por isso, com a publicação da Lei nº 10.639/2003 (BRASIL, 2003), se reconhece a necessidade de inserir ações afirmativas no currículo oficial da rede de ensino, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica. Assim, deve-se levar em conta que, conforme sinalizam os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997, p. 41) embora tenha sido demasiadamente ressaltado “o papel de reprodutora de mecanismos de dominação e exclusão, atribuídos historicamente à escola, cabe lembrar que potencializar suas possibilidades de resistência [...] depende também, [...] dos educadores”.
Compreendemos que a educação, como um direito que garante acesso a outros direitos, tem a missão de disseminar a promoção da equidade humana, em resposta à lei que nos garante a igualdade, repudiando a distinção de qualquer natureza e assegurando a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade – Art. 5º, do capítulo 1º, dos direitos e deveres individuais e coletivos – Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988). Sendo obrigação do Estado proteger as manifestações culturais afro-brasileiras e dos demais agrupamentos inseridos no processo civilizatório nacional – Art. 215, seção II da cultura, inciso primeiro da atual Constituição da República Federativa do Brasil (BRASIL, 1988).
 Com relação à Lei nº 10.639/2003, é importante esclarecer que já se passaram mais de dez anos da sua promulgação, tempo suficiente para se reconhecer que muito vem sendo desenvolvido e recriado por diversas pessoas, em distintos lugares do Brasil, avançando no sentido da promoção de reais transformações nas relações sociais em prol da igualdade racial. Com vistas a tornar as disposições legais prescritas pela referida lei, foram desenvolvidas ações e experiências inovadoras, efetivadas por professores/as, gestores/as, estudantes e familiares, comprometidos com a melhoria da qualidade da educação, e, para tal, foram enfrentadas as inúmeras dificuldades tão presentes no processo da educação brasileira. Sendo assim, é preciso continuar adotando iniciativas que visem, em especial, a formação continuada dos/as docentes da educação básica, para que possam superar os desafios impostos às suas práticas pedagógicas a partir da Lei 10.639/2003.
De acordo com Paula e Guimarães (2014, p. 437), “essas iniciativas nem sempre são acompanhadas de uma reflexão acerca das suas implicações potencializadoras de uma produção de natureza teórico-científica sobre a formação continuada dos professores com foco nesse tema específico”. Os autores basearam-se em um estudo que objetivava analisar, em artigos publicados em revistas especializadas na área de educação, como as questões étnico-raciais apareciam na formação de professores/as. As análises demonstraram que raramente os estudos relativos ao tema incorporavam, em suas reflexões, as categorias de raça, etnia, preconceito e discriminação. Desse modo, os autores evidenciaram que as questões em torno das relações étnico-raciais eram marginalizadas ou invisibilizadas, na educação, especificamente na formação continuada dos/as docentes, isso antes da aprovação da Lei federal nº 10.639/2003.
Por isso, a formação de professores/as deve ser encarada como uma das principais metas das políticas públicas governamentais, bem como das ações empreendidas por instituições de fomento à educação. Afinal, a omissão concernente ao estudo da cultura afro-brasileira, ganha longevidade quando se instalar também no presente das salas de aula de professores/as que não conseguem fazer de suas práticas pedagógicas, exímias oportunidades para o desencadeamento de processos afirmativos das identidades e da historicidade negada e distorcida do povo negro. Portanto, nós, educadores/as brasileiros/as, necessitamos contemplar no interior das escolas a discussão acerca das relações raciais, bem como de nossa diversidade racial.
Definitivamente, ainda é preciso investir maior esforço para que seja possível realizar um significativo salto, no intuito de minorar o fosso histórico, responsável, entre tantas coisas, pela ausência de qualidade na educação dos/as negros/as no Brasil, pois, quando se analisa o povo negro, no campo educacional, sua desvantagem também é destacada, o que condiciona seu estatuto de cidadania como de “segunda classe”. Esse déficit educacional entre negros/as e brancos/as nos revela um índice elevado de cidadãos/ãs negros/as que, na contemporaneidade, têm dificuldades de acesso e permanência na escola, assumindo o caráter de excluídos/as. Logo, o que pretende a Lei nº 10.639/2003 é devolver o direito dos/as negros/as de se reconhecerem partícipes da cultura nacional, expressando livremente suas próprias concepções de mundo, e manifestando com autêntica autonomia seus pensamentos.
Isto é, os/as descendentes de diferentes povos e culturas precisam encontrar na escola condições de ter suas histórias e identidades reconhecidas e valorizadas. Nesta perspectiva, a escola deve ser produtora de conhecimentos e divulgadora de atitudes, posturas e valores, que se proponham a integrar todos e todas, igualmente, respeitando-se o direito à alteridade e rompendo com uma prática que, muitas vezes, insiste na negação do “outro” como ser humano. Isso exigirá condições materiais das escolas e formação adequada dos/as professores/as, portanto, aspectos indispensáveis a uma educação de qualidade.

Referências
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais – pluralidade cultural e orientações sexuais.Temas transversais, Brasília, v. 10, p. 1-126, 1997.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.

PAULA, B. X. de,; GUIMARÃES, S. 10 anos da lei federal nº 10.639/2003 e a formação de professores: uma leitura de pesquisas científicas. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 40, n. 2, p. 435-448, abr./jun. 2014.

7 comentários:

  1. Colegas Antonio e Jane,ainda há muito o que desconstruir nesta questão.Noto mais ainda que,com esse reboliço de mudança na educação a todo custo,como bem quer esse governo elitista,trabalhar sob a perspectiva do empoderamento,do valor que tem nós negros,da relevância que precisa ter o negro na universidade(aluno ou professor),começa custar muito caro porque os investimentos estão usurpados e os direitos quase negados.Tem crescido o número de jovens fora da universidade? Por quê? Quantos educadores negros ocupam as faculdades? todas as escolas trabalham a questão afro de forma proposta ou imposta(quando trabalham)? No município tem docentes que dizem não trabalhar muito com certas temáticas para não perder tempo e o foco nos assuntos do vestibular.Então,viver nesse contexto que estamos ainda obscurece por demais a vitalidade desta lei,tão significativa para nossa história "mal contada" e pouco conhecida. Ivanize Santana

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    1. Olá, minha colega estimada!

      Na discussão em que participei a partir das provocações lançadas pelo professor Fernando Seffner no seu texto intitulado 'ANTES SONHAVA, HOJE NÃO DURMO: A LIBERDADE DE ENSINAR SOB ATAQUE'; eu dizia que as mudanças que acontecem nesse princípio de século, surgem com desafios para os/as educadores, principalmente os/as educadores das escolas públicas. Afinal, uma das principais características desse espaço é a presença da diversidade linda, profunda, visceral e inquietante.
      De fato, torna-se mais fácil se colocar numa tal "zona neutra", furtando-se da missão de estudar para argumentar, ler para debater, debruçar para entender, ouvir para ser capaz de "vestir a pele do outro/outra".
      É mais confortável ser apolítico, privilegiando o repasse de conteúdos estrategicamente escolhidos para ensinar a operar, instrumentalizar e calcular coisas.
      Pensar é perigoso, refletir é subversivo, "lutar por seus direitos é um defeito que mata". Ser um/uma professor/a consciente do seu lugar no mundo, enquanto pessoa histórica é uma afronta para determinados projetos que lembram velhos e conhecidos grilhões e amarras.

      Obrigado pela participação e forte abraço!

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  2. Parabéns pelo artigo. Na opinião de vocês, o que poderia ser feito para que os professores se sentissem motivados em trabalhar essa temática nas escolas?? Estudos já mostraram que muitos docentes se recusam a fazer isso mesmo diante dá obrigatoriedade dá lei.

    Gracinete Mousinho da Silva.

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá, parabéns, o tema foi muito bem exposto. Minha pergunta é:
    Porque ainda é oculta a Lei 10.639/2003, no cotidiano escolar, mesmo após 10 anos de sua implementação?... De que maneira podemos dar esse SALTO, como citado no texto, para minimizar a desigualdade social?
    Geanice Pinheiro dos Santos

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  5. Parabéns pelo artigo!
    Trabalhos como esse são essenciais para que a lei seja cumprida de maneira satisfatória. Um dos muitos desafios é usar como ferramenta os livros didáticos em que grande parte ainda abordam de maneira rasa essa temática. Como lidar com esse obstáculo?

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  6. Olá, Gracinete, Geanice e Amabilis!

    Tudo bem com vocês?

    As perguntas feitas foram muito semelhantes e próximas, desse modo, escreverei uma única resposta na expectativa de corresponder a todas.

    De fato, já se passaram mais de dez anos da promulgação da Lei nº 10.639/2003, tempo suficiente para autenticar o que vem sendo desenvolvido, mas também para reconhecer que precisamos fazer mais, uma vez que a referida lei para muitos ainda é “letra morta”, pois estão alheios a sua importância e aplicabilidade. Sendo assim, de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, o sucesso das políticas públicas de Estado, institucionais e pedagógicas, visando reparações, reconhecimento e valorização da identidade, da cultura e da história dos negros depende fundamentalmente de condições físicas, materiais, intelectuais e afetivas favoráveis ao ensino e à aprendizagem; isto é, todos os/as alunos/as negros/as e não negros/as, bem como seus professores/as, precisam sentir-se valorizados/as e apoiados/as.

    Portanto, de que maneira a prática do/a professor/a poderá auxiliar na superação dos mecanismos que subjugam os direitos dos povos negros, garantidos pelas políticas públicas educacionais e curriculares, se a sua própria prática docente é também negligenciada? Da mesma maneira que as reproduções ultrajantes, desfavoráveis e bestiais da identidade e da cultura dos povos negros, também repercutem no dia a dia escolar, já que as experiências vividas são formadoras, são forças que nos atingem e marcam as nossas ações e discursos.

    Com efeito, afirmo que a prática dos/as docentes carece de experiências reflexivas sobre uma educação antirracista, no intuito de oportunizar formações que sejam momentos para a imersão nas memórias, observando como a identidade e a cultura afro-brasileira emergem nas histórias de vida, formação-profissão dos/as docentes, compreendendo os sentidos construídos pelos/as docentes, a partir da relação entre educação e questões étnico-raciais.

    Muitos/as professores/as estão distantes dos estudos, leituras e materiais pedagógicos que os auxiliem na prática educativa, no tocante às identidades e à cultura afro-brasileira. Afinal, para ensinar, exige-se conhecimento. No entanto, percebeu-se que antes mesmo de se recorrer às informações contidas em compêndios, livros e em pesquisa acerca das questões já mencionadas, é preciso refletir sobre o lugar do negro nas histórias de vida desses professores/as para que, dessa maneira, possam agir diante da segregação presento no “outro”. Logo, a hipotética “mediocridade” utilizada como explicação para o não cumprimento da Lei nº 10.639/2003 pelos/as professores/as, definitivamente não se sustenta.

    Forte abraço e muito obrigado pela participação!

    Antonio José

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