Páginas

Ane Luíse

ENSINO DE HISTÓRIA INDÍGENA NA TRAMA DA NARRATIVA HISTÓRICA DOS POVOS KIRIRI
Dr. Ane Luíse Silva Mecenas Santos
UNISINOS

Esse trabalho apresenta a proposta de valorizar a experiência histórica do povo Kiriri, por meio da construção de instrumentos de preservação e divulgação das narrativas históricas em suporte digital. Isso se torna relevante para o povo, que terá a sua disposição mais instrumentos que podem ser utilizados nas escolas e na própria comunidade como alicerce para o fortalecimento de sua identidade cultural, como também para promover a visibilidade de seu olhar acerca do passado. Com base nas de impressionantes histórias narradas pelos índios da aldeia de Mirandela, no município baiano de Ribeira do Pombal. Liderados pelo cacique Cristiano, os Kiriri buscam narrar o seu passado como estratégia de reafirmação identitária e, certamente, constitui uma instigante leitura da história na sua perspectiva inversa, como bem salientou Edward Thompson, “a história vista por baixo”.
Tudo começou em um dia de caça. Nos caminhos do sertão, um índio saiu para o mato, empunhando seu arco e sua flecha. Ele era um índio Kiriri e naquele tempo, os índios moravam no lugar distante, chamado “Igreja velha”. Sem encontrar a caça, o índio andou pelas bandas do riacho da serra, até que viu outro índio acocorado, com as duas mãos estendidas.
Pensando se tratar de uma caça, o Kiriri atirou-lhe uma flecha, que acertou uma das mãos. Mas o nativo continuou acocorado, vivo, inabalável. O guerreiro Kiriri então atirou-lhe outra flecha, que por sua vez acertou a outra mão. Com as duas mãos ensanguentadas, o índio acocorado revelou-se como o deus Tupã.
Ao perceber que se tratava da presença de Tupã, o índio o levou para a igreja velha, para que pudesse existir o culto dos demais nativos. Eles então construíram um tenda para abrigar o deus Tupã e tornar possível o culto. Mas, para surpresa de todos, no dia seguinte, Tupã não estava na tenda. Todos saíram a sua procura e o encontraram nas imediações do riacho da serra, onde estava anteriormente. Os kiriri o levaram novamente para a igreja velha, mas a cena se repetiu durante alguns dias. Diante do impasse, o povo Kiriri decidiu seguir a vontade de Tupã e mudaram a sua aldeia para as bandas do riacho.
Um dia, apareceram os jesuítas na aldeia.  Eles logo fizeram amizade com os índios e viram a imagem viva de Tupã. Impressionados, os jesuítas pegaram Tupã vivo e levaram para o Vaticano, onde está até hoje. No lugar, trouxeram uma imagem de barro, parecida com Tupã, mas não era viva. Essa é a imagem de Jesus Ressuscitado, deixado na igreja nova de Sacos dos Morcegos. E Tupã está no Vaticano!
Essa é a síntese de uma das impressionantes histórias narradas pelos índios da aldeia de Mirandela, no município baiano de Ribeira do Pombal. Liderados pelo cacique Cristiano, os Kiriri buscam narrar o seu passado como estratégia de reafirmação identitária e, certamente, constitui uma instigante leitura da história na sua perspectiva inversa, como bem salientou Edward Thompson, “a história vista por baixo” (THOMPSON, 2001. p.265.).
A memória coletiva do povo coletivo do povo Kiriri registra elementos da conquista e do cotidiano deles, que não se faz presente na documentação, nas conhecidas narrativas dos conquistador. Muito menos nos conquistadores do conhecimento que durante os séculos seguintes continuaram a reforçar a história do povoamento da América portuguesa com o silênciamento do índio como um sujeito histórico, apenas como um elemento inserido na mundialização dos tempos modernos. (GRUZINSKI, 2014)
Em algumas passagens das memórias, os Kiriri integram os fatos históricos e a um discurso temporal é fluído e inconstante, impossibilitando a compreensão dos processo histórico (POLLAK, 1989, p. 3). Eles justificam, por exemplo, que em decorrência do “abandono” dos jesuítas muitos seguiram Antônio Conselheiro em busca dos rios de leite no arraial de Canudos. (COMUNIDADE KIRIRI, 2002, p.6) Integram o século XVIII e XIX, com uma linearidade temporal, como se o fato de um século anterior fosse consequência direta do fato do século seguinte, algo muitas vezes incompreendido e não permitido nas interpretações acadêmicas.
Mas a presença marcante nos discursos é o jesuíta. Evidenciada na própria narrativa do que para a historiografia consiste na expulsão dos membros da Ordem e para eles reflete o abandono, a traição. De acordo com os Kiriri, num dia os padres avisaram que iriam se ausentar, mas que retornariam em breve. E assim partiram os padres. Contundo, pela noite enquanto os índios estavam reunidos em Canabrava, chegaram um grupo de brancos que os deram bebidas. Um tempo depois um clarão toma conta das matas no entorno da aldeia. E o calor intenso se aproxima das casas. Chamas tomaram conta de tudo e muitos não conseguiram sobreviver. Os poucos que escaparam buscaram abrigo na aldeia de Saco dos Morcegos. Sem a divisão temporal dos acontecimentos os índios narram o que não se encontra presente no alvará de elevação das aldeias a vilas que marca o fim da administração desses espaços pelos padres da Companhia de Jesus.
Os índios do sertão eram conhecidos por sua língua travada e de difícil compreensão e, especialmente, pela sua barbárie e ausência de disciplina. No crepúsculo do século XVII, a ação jesuítica se intensificou no sertão da América portuguesa e as cartas produzidas pelos missionários seguiam refletindo suas preocupações em relação à efetiva conversão e às expressões de fé e religiosidade dos indígenas. Na segunda metade do século XVII, foram instaladas a aldeia de Nossa Senhora da Conceição de Natuba (1666), Santa Tereza dos Quiriris, em Canabrava (1667), Nossa Senhora do Socorro do Geru (1683) e Ascensão do Saco dos Morcegos  (1691) (LEITE, 2004, p. 209). Os jesuítas atuaram nas missões do sertão - entre o Rio Real e o Rio São Francisco - até a publicação do Alvará de 8 de maio de 1758, que ordenou que o Ouvidor Miguel de Ares Lobo de Carvalho se encarregasse da elevação dos aldeamentos à condição de vilas.
Essa narrativa histórica se apresenta sob o ângulo inverso da historiografia tradicional: o Kiriri conta a história do seu modo, com sua perspectiva de tempo e de espaço, dentro de sua lógica de pensamento. Para a escrita desse trabalho não foi pensando o cotejo entre a oralidade indígena e os relatos dos escritos. Esses discursos não são fonte para o presente trabalho, apenas nos evidencia a multiplicidades de histórias acerca da conquista e do cotidiano das aldeias.
Geralmente, a historiografia brasileira tem propiciado significativas revisões na interpretação do passado nacional no tocante ao processo de catequese e conversão dos povos indígenas. Todavia, esse olhar revisionista, apesar de ter superado em grande medida as leituras enviesadas respaldadas nas dicotomias índio x jesuíta, catequese x escravidão, aculturação x etnocídio, construindo novos olhares com ênfase para os encontros de povos e culturas diferentes e na mediação ou tradução cultural, ainda existe uma problemática lacuna nos estudos elaborados no país: a pouca ou inexistência de ênfase para o olhar do índio acerca da história.
Essa dissonância interpretativa é corroborada pelo uso de fontes históricas tradicionais, especialmente os textos escritos produzidos pelo colonizador (membros da Ordem, representantes do governo lusitano, viajantes e cronistas) e diante da quase inexistência de documentação produzida pelos povos indígenas do Brasil.
Como pensar em uma metodologia de pesquisa que extrapole o âmbito acadêmico e atenda, criteriosamente, aos elementos fundantes de uma cultura tão próxima e ao mesmo tão distante da nossa? Essa questão é de grande relevância para se pensar as memórias e a construção identitária dos Kiriri, mas de igual modo, é também de grande complexidade.
Desse modo, a proposta a qual apresentamos tem caráter preliminar, pois se trata de um olhar gestado no âmbito acadêmico e que necessitará ainda passar pelo crivo dos pesquisadores bolsistas indígenas, para assim se constituir uma proposta adequada visualmente e metodologicamente às características inerentes ao povo Kiriri.
Inicialmente, propomos uma pesquisa de cunho respaldado na oralidade. A tradição oral do povo Kiriri e suas práticas culturais com os fazeres e saberes serão o eixo norteador da pesquisa. A partir da seleção dos bolsistas entre os índios, realizaremos reuniões para se pensar nas estratégias de registro de suas narrativas históricas.
Nesse sentido, serão realizadas entrevistas no sentido que valorizem tanto a experiência social individual dos Kiriri, como também as memórias coletivas e diferentes apropriações do passado. Todas essas ações deverão ser registradas em fotografias e vídeos, visando a elaboração do documentário e do catálogo.
Geralmente, a historiografia brasileira tem propiciado significativas revisões na interpretação do passado nacional no tocante ao processo de catequese e conversão dos povos indígenas. Todavia, esse olhar revisionista, apesar de ter superado em grande medida as leituras enviesadas respaldadas nas dicotomias índio x jesuíta, catequese x escravidão, aculturação x etnocídio, construindo novos olhares com ênfase para os encontros de povos e culturas diferentes e na mediação ou tradução cultural, ainda existe uma problemática lacunar nos estudos elaborados no país: a pouca ou inexistência de ênfase para o olhar do índio acerca da história.
Essa dissonância interpretativa é corroborada pelo uso de fontes históricas tradicionais, especialmente os textos escritos produzidos pelo colonizador (membros da Ordem, representantes do governo lusitano, viajantes e cronistas) e diante da quase inexistência de documentação produzida pelos povos indígenas do Brasil. Esse trabalho tem como cerne reestruturar essa cadeia de pensamento, pois busca construir e ou dar visibilidade a tradicional narrativa histórica da catequese pelo olhar do índio, valorizando-se as experiências sociais do povo Kiriri da aldeia de Mirandela.
Esse trabalho se insere no campo da história pública, pois valoriza os atores históricos Kiriri no processo de construção mnemônica e nas suas habilidades de expressar as narrativas históricas de seu povo. Com isso, o foco central é permitir a elaboração de recursos que tenham como cerne a própria lógica de pensamento dos Kiriri, no sentido de possibilitar o seu uso em instituições educacionais presentes na tribo, bem como no fortalecimento de vínculos sociais da comunidade.

Referências bibliográficas
ALDEIA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Série História. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
BARTH, Frederik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Tradução John Cunha Comerford. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2000.
COMUNIDADE KIRIRI. Índios na visão dos índios . Kiriri. Salvador: Governo da Bahia, 2002.
COMUNIDADE KIRIRI. Histórias Kiriri: fala dos contadores e escrita no português oficial. Brasília: MEC, 2000.
DANTAS, Mariana Albuquerque. Identidades indígenas no Nordeste. In.: WITTMANN, Luisa Tombini. Ensino (d)e História Indígena.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.
DANTAS, Beatriz Góis. Missão Indígena no Geru. Aracaju: UFS, 1973.
FUNARI, Pedro Paulo; PINÓN, Ana. A temática indígena na escola: subsídios para professores. São Paulo: Contexto, 2011.
GRUZINSKI, Serge. As quatro partes do mundo.História de uma mundialização. Trad. Cleonice Paes Barreto Mourão; Consuelo Fortes Santiago. Minas Gerais: Editora UFMG; São Paulo: Edusp, 2014.
MECENAS, A. L. S.. Doutrina aos meninos da aldeia : práticas de ensino jesuítico na América portuguesa. Interfaces Científicas - Educação, v. 2, p. 19-25, 2014.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.
POMPA, Cristina. Religião como tradução: missionários, Tupi e “Tapuia” no Brasil colonial. Bauru: EDUSC, 2003.
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001.



4 comentários:

  1. Cara Dra. Luíse Silva.

    Gostei da temática do texto. A partir de indícios apresentados, pude perceber que os Kiriri constroem suas próprias narrativas, de forma particular, no que concerne ao contato com os não indígenas e respondem às questões históricas que fundamentam tais processos a partir de uma cosmologia característica. Isto ocorre com centenas de grupos étnicos. Mas, o que torna tal processo único e valioso é, justamente, a constatação de que as narrativas históricas do contato com os europeus, apesar de dialogarem com elementos semelhantes (homem branco, missionários etc.) se conformam com base em cosmologias particulares. Assim, parabenizo-lhe pela escolha do tema.

    Não tive contato com suas pesquisas relacionadas à temática. Minhas inquietações partem do que pude constatar na leitura do presente texto. Desta forma, as questões que me saltaram à vista são as seguintes:

    1 – Ao iniciar o texto, você observa que “Esse trabalho apresenta a proposta de valorizar a experiência histórica do povo Kiriri, por meio da construção de instrumentos de preservação e divulgação das narrativas históricas em suporte digital.”. No entanto, no decorrer do texto, não ficam evidentes os processos que poderiam dar suporte a este propósito. Nesse sentido, gostaria que nos esclarecesse sobre as metodologias utilizadas para o alcance de tal objetivo, quer seja a “construção de instrumentos de preservação e divulgação das narrativas históricas em suporte digital.”.

    2 – No decorrer do texto você observa que “a proposta a qual apresentamos tem caráter preliminar, pois se trata de um olhar gestado no âmbito acadêmico e que necessitará ainda passar pelo crivo dos pesquisadores bolsistas indígenas, para assim se constituir uma proposta adequada visualmente e metodologicamente às características inerentes ao povo Kiriri.”. Tal observação, em certo sentido, tem relação com o questionamento anterior, pois, mais uma vez, não me parece ter ficado clara, uma potencial apresentação de proposta. Assim, gostaria que colocasses em evidência o que você pretende significar quando observa que há uma proposta.

    3 – Ainda seguindo a citação mencionada na questão 2, faço aqui apenas uma reflexão: Não considero que apenas o parecer dos “pesquisadores bolsistas indígenas” poderá dar conta de definir uma “proposta adequada visualmente e metodologicamente às características inerentes ao povo Kiriri”. Considerando que ser indígena se constitui no seio de uma coletividade, é natural que sujeitos indígenas particulares não possam dar conta de definir uma questão que se constitui no coletivo. Dito de outra forma, estudantes indígenas, ainda que possuam conhecimentos cosmológicos de seus processos históricos e detenha conhecimentos técnicos e pedagógicos, não podem definir algo que se relaciona ao coletivo do qual fazem parte. Em perspectiva indígena, a qual constitui o poder no seio de suas coletividades, todas as escolhas, decisões, projetos ou qualquer outra coisa que influencie a coletividade, deve passar pela aprovação de seus membros. Sujeitos indígenas atuam como porta-vozes de seus grupos étnicos e apresentam à comunidade não indígena, as demandas de seu grupo. Ainda que detenha autoridade para decidir pelo grupo, tal autoridade é a ele concedida pela coletividade que, a qualquer momento, pode deslegitimar uma autoridade outorgada. Assim, a melhor forma de se desenvolver ferramentas e metodologias que auxiliem no processo de ensino-aprendizagem é dialogar com a comunidade Kiriri e não apenas com seus membros acadêmicos. Os estudantes indígenas podem auxiliar na construção de tais suportes, no entanto, essa consultoria não dá conta de se desenvolver uma “proposta adequada visualmente e metodologicamente às características inerentes ao povo Kiriri”. Para tanto, se faz necessário a consulta à comunidade, dos alunos das escolas indígenas, do velhos, dos parentes, de toda a sua coletividade...

    Parabenizo-lhe mais uma vez pela escolha do tema e agradeço antecipadamente pelos esclarecimentos.

    Assina: Fernando Roque Fernandes.

    ResponderExcluir
  2. Parabéns pelo tema. professora gostaria de saber como essa tribo Kiriri que a senhora estuda ainda mantei suas praticas, em meio ao grande processo de globalização e do capitalismo desenfreado?

    Assina: Amanda de Oliveira Santos

    ResponderExcluir
  3. Olá. Gostaria de saber quais são esses meios de instrumentalização dos Kiriri?
    Quem "alimentará" o banco os meios digitais da pesquisa: os Kiriri ou pesquisadores?

    ResponderExcluir
  4. Ane Luíse ... Parabéns pelo trabalho! Gostaria de saber como vc pretende trabalhar a história e a cultura dos indígenas Kiriri no ensino de História por meio de suas narrativas?

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.