Páginas

Vitor; Elisângela; Ana Vitória; Julien; Mariana

NOTAS ACERCA DA PROPOSTA DE TRATAMENTO TÉCNICO, HIGIENIZAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DO ACERVO DA REDE FERROVIÁRIA FEDERAL NO IFPR, CAMPUS UNIÃO DA VITÓRIA
Dr.Vitor Marcos Gregório
Esp. Elisângela Mota Pires
Ana Vitória Kozan Kiedes
Julien de Paula
Mariana Hirsch Leandro
IFPR/União da Vitória

O historiador francês Jacques Le Goff lembra, em sua obra “História e memória”, que são dois os tipos de materiais aos quais se aplica a memória coletiva e a história, sua forma científica: os documentos e os monumentos. De acordo com sua definição, os monumentos – heranças ou sinais do passado – nada mais são do que “tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação”. Neste sentido, uma de suas características centrais seria a capacidade de vincular-se ao poder de conservação, voluntária ou não, da memória das sociedades históricas (LE GOFF, 1990, p. 535-536). Por seu turno o documento, fruto direto de uma escolha consciente do historiador (responsável por elegê-lo enquanto mediador entre seus próprios questionamentos e o passado no qual elege buscar respostas), tem como característica atuar como uma espécie de testemunho inconsciente (ou consciente) dos fatos passados, permitindo seguir passos que não mais podem ser contemplados na areia do tempo sempre corrente e fugidio, reconstruir realidades que, não fossem por estes vestígios buscados incessantemente pelos cientistas do tempo idos, não mais poderiam ser conhecidas ou, sequer, vislumbradas (IDEM, p. 537).
Tratam-se, claro está, de definições que colocam no sujeito que indaga o papel de protagonista do processo de reconstrução histórica, que colocam como necessário fator determinante das respostas aferidas os questionamentos formulados pelo observador e seu direcionamento aos elementos que medeiam entre ele, ser concreto filho de seu tempo e dotado de capacidade reflexiva e o passado, realidade apenas intuída que se manifesta concretamente apenas nos vestígios que de si legou àqueles que vieram posteriormente. Neste sentido, como bem defenderam os fundadores da revista “Annales d’Histoire économique et sociale”, precursora da famosa “Escola dos Annales”, nem monumentos e tampouco documentos precisam se constituir, necessariamente, apenas de materiais escritos, uma vez que é da capacidade de análise do historiador que resultará as respostas que oferecerão com relação ao passado que representam. Segundo Lucien Febvre, “a história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas pode fazer-se, deve fazer-se, sem documentos escritos, quando não existem. Com tudo que a habilidade do historiador lhe permita utilizar para fabricar o seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com as formas do campo e as ervas daninhas. Com os eclipses da Lua e a atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, como tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.” (FEBVRE, 1949, p. 428).
Não há história, portanto, sem a capacidade reflexiva do observador. Mas não há, do mesmo modo, história sem a existência de vestígios monumentais que possam ser transformados – pelo questionamento realizado – em documentos. Sendo a história apenas a forma científica da memória coletiva, aquela que mantém em si as informações que nos permitem compreender o ponto de partida, as causas e o modo pelo qual se construiu a trajetória que nos trouxe até o presente configurando, deste modo, uma determinada forma identitária única e irrepetível, fica clara a importância da preservação destes vestígios para a conservação desta mesma memória. Transmutam-se estes vestígios, definidores de uma determinada identidade grupal (que pode ser local, regional, nacional ou supranacional) em patrimônios culturais, “conjunto de bens, materiais e imateriais, que são considerados de interesse coletivo, suficientemente relevantes para a perpetuação no tempo” [RODRIGUES, s/d, p. 48], expressões únicas das vivências históricas de todo um povo e, portanto, instrumentos únicos para compreensão deste mesmo povo.
O acervo da Rede Ferroviária Federal S/A – RFFSA constitui, pode-se dizer, um valioso patrimônio histórico e cultural. Formado por um vasto conjunto de itens escritos e não escritos das mais diversas épocas do século XX, permite reconstruir uma infinidade de trajetórias históricas de indivíduos e grupos as quais, unidas, configuram um dos capítulos mais importantes da história não apenas do Paraná e de Santa Catarina, mas de todo o Brasil. Dentro deste conjunto mais amplo de incontáveis itens uma considerável porção foi destacada e cedida ao campus União da Vitória do Instituto Federal do Paraná, através de contrato de concessão negociado juntamente ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, Superintendência Paraná. A escolha de nossas dependências para depósito deste material não foi aleatória. A região na qual estamos inseridos deve muito de sua história aos trilhos da antiga Estrada de Ferro São Paulo – Rio Grande, posteriormente Rede de Viação Paraná – Santa Catarina e, finalmente, Rede Ferroviária Federal S/A. A Guerra do Contestado, que convulsionou todo este território no início do século XX provocando mortes, destruição, e uma divisão de ordem política que se mantém até hoje, teve na construção desta ferrovia um de seus mais fortes motivadores. Do mesmo modo, foi através das locomotivas que por aqui transitaram que chegou grande parte da riqueza responsável pela manutenção de sua população durante décadas, e grande parte das construções oriundas do apogeu deste meio de transporte ainda existem e servem, em boa medida, aos moradores das duas margens do rio Iguaçu. Muitas das famílias aqui residentes possuíram um ou mais membros trabalhando na estação e em seu entorno, e vários daqueles que outrora garantiam a preservação da linha e o bom funcionamento das composições ainda se encontram vivos para contar histórias daqueles tempos idos.
De fato, não foram poucas as oportunidades nas quais pudemos tomar contato com o desejo de que medidas concretas para a valorização da história ferroviária de nossas cidades fossem adotadas. Neste sentido a locomotiva Lima 1913, carinhosamente apelidada “Maria Fumaça”, como outras tantas locomotivas a vapor ainda existentes Brasil afora e atualmente desativada, foi sempre lembrada como um patrimônio histórico de inestimável valor para toda a comunidade. Do mesmo modo, a ausência de acervos e locais nos quais sua trajetória pudesse ser estudada com frequência surgiu como a causa de sentidas lamentações por parte de nossos interlocutores. Estas conversas, conjugadas à tomada de conhecimento da existência deste acervo (até então votado ao estado de abandono nas dependências do prédio Teixeira Soares, antiga sede da Rede de Viação Paraná – Santa Catarina, em Curitiba), levaram ao início de negociações que duraram cerca de sete meses e culminaram com a concessão acima mencionada.
Uma vez conquistada, era chegada a hora de pensar nos meios necessários para disponibilizar esta importante documentação a toda a comunidade. Devido às suas dimensões, ficou logo patente que tal objetivo não poderia ser alcançado através do trabalho solitário de um docente (ao menos não sem requerer anos de trabalho do mesmo, em paralelo com as suas atividades ordinárias realizadas no campus). Surgiu daí a ideia de contar com a participação dos estudantes na empreitada a qual proporcionará, além da diminuição do tempo necessário para a conclusão dos trabalhos de organização e catalogação necessários para disponibilização do acervo para acesso controlado de toda a comunidade, uma oportunidade única para realização de atividades voltadas para a apropriação de conhecimentos úteis para a formação integral de nossos jovens. Isto porque este projeto tem como pressuposto o reconhecimento de que não é possível formar um cidadão plenamente consciente se não lhe forem apresentados os processos centrais que definiram sua trajetória histórica, incentivando ao mesmo tempo a reflexão crítica sobre essa mesma trajetória e sobre os modos de transformá-la decisivamente, no sentido de tornar objetivamente melhores as condições de vida do indivíduo e da sociedade na qual está inserido. Ao mesmo tempo, os trabalhos técnicos relativos à higienização, organização e catalogação deste importante material propiciarão maior integração entre o campus e o restante da sociedade, através da realização de eventos periódicos de divulgação das atividades realizadas e, finalmente, da recepção de todos aqueles interessados na história da ferrovia e desta grande região em suas dependências, quando as atividades programadas estiverem concluídas.
Constitui ponto nodal da definição do conceito de patrimônio, tal qual explicitada brevemente acima, o reconhecimento de sua importância para a garantia da perpetuação no tempo da trajetória humana, o que o torna instrumento de imensurável valor para a compreensão desta mesma trajetória e do grupo que a realizou. Neste sentido, a concessão do acervo da Rede Ferroviária Federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN ao nosso campus representa uma feliz ocasião na qual os princípios norteadores do Instituto Federal do Paraná, enquanto instituição, e do campus União da Vitória, enquanto agente de atuação direta na localidade, se coadunam perfeitamente com as políticas definidoras daquela organização votada à preservação patrimonial, tal qual definido no próprio contrato de concessão deste importante acervo. Afinal, como muito bem definido neste documento, a melhor forma de conservar um patrimônio é colocando-o a serviço da comunidade, e é exatamente isso que a proposta aqui apresentada objetiva realizar.
Com a presença destes documentos em nosso campus ganharão os estudantes, que terão a oportunidade de manter contato com um acervo riquíssimo repleto de itens únicos, muitos dos quais não disponíveis em nenhum outro lugar do país. Ganharão os moradores de toda a região de Porto União da Vitória, que terão a oportunidade de compreender sua própria trajetória através da consulta direta a um material que, se estivesse em outra cidade, dificilmente poderia ser acessada. Ganhará o poder público municipal, que passará a contar com um importante instrumento pedagógico e de pesquisa disponível também para os estudantes das demais escolas públicas e privadas, além das faculdades. E ganhará, em última instância, todo o Brasil, que poderá contar com a preservação de um importante acervo que, de outra forma, muito provavelmente seria irremediavelmente perdido como vítima do descaso e do abandono que já vitimaram tantos outros insubstituíveis patrimônios históricos e culturais nos mais diversos recantos do país.

Bibliografia
ABREU, Regina & CHAGAS, Mário (orgs). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro. DP&A. 2003;
CAMPUS UNIÃO DA VITÓRIA. Projeto Político Pedagógico – Versão preliminar. União da Vitória. 2014.
FEBVRE, Lucien. Vers âne autre histoire. In: Revue de métaphysique et de morale, número LVIII. 1949, pp. 419-438;
IFPR. Plano de Desenvolvimento Institucional 2014-2018. Curitiba. Dezembro de 2014;
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas. Editora da Unicamp, 1990;
ROCHA, Thaíse Sá Freire. Refletindo sobre memória, identidade e patrimônio: as contribuições do programa de Educação Patrimonial do MAEA-UFJF. In: Anais do XVII Encontro Regional (ANPUH-MG). Mariana. 2012. Disponível em: http://www.encontro2012.mg.anpuh.org/resources/anais/24/1340766055_ARQUIVO_Artigo-Anpuh.pdf. Acesso em 8 de fevereiro de 2017;
RODRIGUES, Donizete. Patrimônio cultural, memória social e identidade: uma abordagem antropológica. In: Revista Online do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, número 1. s/d, pp. 45-52;


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.