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METODOLOGIAS PARA PESQUISA EM HISTÓRIA DA ARTE: O PROBLEMA DA FALTA DE DATAÇÃO EM PINTURAS ESTUDADAS
Rodrigo Henrique Araújo da Costa
Prof. Ass. UFCG

Há um claro problema quando não temos a data de execução de uma pintura, e é ausente a datação pelo artista. Muitas vezes, não podemos fugir do grau de especulação que isso traz, por não termos uma comprovação segura sobre as datas de produção. Ao tratarmos sobre isso, consideramos que Paul Ricoeur (2007, p. 170) adverte e recorda aos historiadores que “A operação historiográfica procede de uma dupla redução, a da experiência viva da memória, mas também a da especulação multimilenária sobre a ordem do tempo”. Para uma pesquisa com este problema, trabalhamos com referências em biografias, catalogues raisonnés e nas menções que os estudiosos fazem no estado da arte sobre tais documentos de fontes bases, quando da dificuldade de acesso a estes.
Existem limitações para a datação e para com as fontes impressas no debate historiográfico sobre pinturas. Foi com este sentimento que buscamos neste artigo ampliar o debate quando nos referimos à sequência e à carência de documentos externos e contemporâneos a um determinado pintor e sua pintura.
No livro Indagações sobre Piero,o historiador Carlo Ginzburg (1989, p. 22) foca como ponto fundamental a clientela. Ele critica o que chamou de “desfile de hipóteses iconológicas”. Não se faz uma pesquisa ampla analisando apenas a clientela, embora saibamos que se trata de fundamental importância para o estudo das pinturas. Devemos realizar uma interpretação que se conduz por diversas frentes, de modo a enriquecer as visões sobre as peças documentais.
A crítica ao que seja considerado “iconológico”, que é analisada por Ginzburg em Indagações sobre Piero não se volta, necessariamente, contra os postulados de Erwin Panofski. Relata-nos Carlo Ginzburg (1989, p. 23), “Como sucede em muitas pesquisas iconológicas, a obra acaba por se tornar um pretexto para uma série de livres associações, baseadas geralmente sobre uma pretendida decifração simbólica”. Concordamos com Ginzburg. Para um historiador cabe relacionar-se dinamicamente com suas fontes, o que não impede de modo algum e sobremaneira que escreva em associação livre e desbrave sua pesquisa por caminhos esperados e, porventura, inesperados.
Ginzburg (1989, p. 23- 24) ajusta-se com E. H. Gombrich ao dizer “Parece-nos assim muito oportuna a proposta [...] de partir da análise das instituições ou dos gêneros, ao invés dos símbolos, para evitar os escorregões daquela que poderíamos definir como a iconologia selvagem”. Há de se considerar que Ginzburg critica que “São demasiado frequentes as articulações entre obra de arte e contexto postas em termos brutalmente simplificados”. Discordar do historiador Carlo Ginzburg figurou-nos relevante nesta análise. Não há como trazer um ponto de vista unívoco a nenhuma das “frentes” e também não há como colocar os símbolos como menos importantes que as instituições e gêneros. Em mesmo sentido, não há como privilegiar o contexto, outrossim, trazendo-o à pesquisa em sua amplitude e abrangência.
Segundo Ginzburg (1989, p. 17), “Roberto Longhi mostrou como um exame aprofundado dos testemunhos pictóricos pode contornar a pobreza da documentação externa”. Robert Longui estava correto. Para Ginzburg é necessária uma reconstrução sobre a qual devemos nos defrontar. Certamente, em seus diversos estudos, tanto Longui como Ginzburg lidaram tanto com a falta dos testemunhos sobre os objetos de estudo como também com a falta de documentos externos. A princípio, isso não deve preocupar em demasia, dado entendermos a Arte segundo a relativização madura de Gilbert Durand, como expressões imemoriais da humanidade.
Datar uma pintura, muitas vezes por figurar como possibilidade, dá margem a resultados e críticas as quais não poderíamos argumentar com a consistência devida caso não aprofundássemos este tema. A pergunta-provocação que pode ser feita seria: que importância real para a metodologia adotada poderia ter a ausência de tais documentações sobre a datação de uma tela?
Ginzburg (1989, p. 19) analisa prudentemente que “[...] é evidente que cada proposta de datação implica a convergência das resultantes estilísticas e das resultantes extra estilísticas: mas esta convergência, este acordo (para usar a expressão de Longui), é um ponto de chegada, não um ponto de partida”. Quanto à datação, não devemos seguir apenas a resultante estilística. Calculamos pela lógica dos fatos e das datações das telas anteriores de um determinado pintor e em um dado contexto. Logo, a “exatidão” das datas de execução ausentes vem das datações da iconografia que rodeiam as telas estudadas, ou seja, as telas anteriores e posteriores. No entanto, há limites a esta escolha. Ginzburg discorda com Longui no método de datação antes de quem, após quem, antes de quê, após o quê. É imprescindível crer na fragilidade da metodologia de Longui, muito embora, em casos de localização temporal e espacial ela seja muito útil e recomendável para estudiosos “distantes” das encomendas e “fontes primárias”.
Desta maneira, para Ginzburg (1989, p. 21), “[...] é muito forte o risco de cair em círculos viciosos que são, por sua vez, fontes de datações errôneas”. As dificuldades das fontes e das datações poderiam ser interpretadas como uma maneira de aprofundarmos o estudo sobre algumas pinturas, e, para isso, devemos tratar este não-dito como um método e também enquanto oportunidade à atividade de escrita do historiador. Daí a criação do conceito de Fontes A, na dissertação Luz sobre o fundo escuro: Caravaggio, São Mateus e o Anjo e Amor vitorioso (1601-1602). Este feito é simples, transformamos as dificuldades a nosso favor. Perante a metodologia adotada, a ausência de uma datação de ilibada confirmação, bem como das fontes chamadas “primárias” não causa prejuízos diretos a uma pesquisa sincera. Prevendo a ausência de um contato com as fontes citadas acima, a metodologia deve focar-se na análise do documento e fonte basilar para os estudos que são as próprias peças documentais sobre as quais o historiador da arte se debruça: as peças de arte, no caso, as pinturas.  
Ainda em mesmo sentido, a interpretação iconológica compreende uma obra de arte como um documento. Para Panofsky (2002, p. 53), a interpretação iconológica “[trata] a obra de arte como um sintoma de algo mais que se expressa numa variedade incontável de outros sintomas e interpretamos suas características composicionais e iconográficas como evidência mais particularizada desse ‘algo a mais’”. Verificado isto, a semelhança com o Paradigma Indiciário de Ginzburg e com a proposta de análise de telas de Giovanni Morelli pode ajudar na busca por datações certeiras.
Tanto Panofsky como Ginzburg referem-se a um olhar de diagnóstico sobre os signos e indícios, “Para captar esses princípios, necessitamos de uma faculdade mental comparável a de um clínico em seus diagnósticos” (PANOFSKY, 2002, p. 64). Essa ideia aproxima este estudo da Teoria do Imaginário de Gilbert Durand, precisamente quando Panofsky trata sobre um ‘algo a mais’. Ora, esse ‘algo a mais’ é também o imaginário. O cuidado deve ser redobrado quando se trata de datações, elas podem mudar tudo. A proposta metodológica de Panofsky (2002, p. 53) é a de buscar no “algo a mais” da execução de sua perspectiva “a descoberta e interpretação desses valores simbólicos”. Panofsky alerta também para um dado que deve ser levado em consideração, estes valores simbólicos “muitas vezes, são desconhecidos pelo próprio artista e podem, até, diferir enfaticamente do que ele conscientemente tentou expressar”.
Ao fragmentar os componentes das imagens, semelhante à técnica de decupagem (utilizada no cinema e na fotografia), ressignificam suas interpretações sobre a obra de arte como um todo, num incessante desmembramento e reagrupamento de signos e indícios. Embora estes modelos apresentados aqui, de significação de uma obra de arte, pareçam irrelacionados, na verdade, falam sobre a obra de arte como um todo, “Fundem-se num mesmo processo orgânico e indivisível” (2002, p. 64).
A interpretação iconológica é a que busca esse “mais além” em uma obra de arte, propondo “investigar a gênese e significação dessa evidência: a interação entre os diversos “tipos”; a influência das ideias filosóficas, teológicas e políticas; os propósitos e inclinações individuais dos artistas e patronos; a correlação entre os conceitos inteligíveis e a forma visível que assume em cada caso específico” (PANOFSKY, 2002, p. 53). Assim,
O historiador da arte terá de aferir o que julga ser o significado intrínseco da obra [...] com base no que pensa ser o significado intrínseco de tanto outros documentos da civilização historicamente relacionados [...]: de documentos que testemunhem as tendências políticas, poéticas, religiosas, filosóficas e sociais da personalidade, período ou país sob investigação (PANOFSKY, 2002, p. 63).
Desta forma, a presença de uma datação que varia, para mais ou para menos, em apenas meses ou um ano, já nos dá o palco da conjuntura histórica e todos os dados fulcrais para o tema: encomenda, produção, recepção, clientela, contexto histórico, contexto do artista, contexto estilístico, análise iconológica, indiciarismo, etc.
Para que a percepção deste problema (a ausência da datação em obras não datadas pelo artista) venha a ser solucionada historicamente, é necessário que este debate historiográfico seja realizado na pesquisa e se torne explícito. As proposituras acima ajudam neste quesito, sugerindo linhas de raciocínio e métodos de interpretação que precisam ser desempenhadas quando do surgimento desta problemática.

Referências Bibliográficas
COLI, Jorge. O que é Arte. 15. ed. , São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.
COSTA, Rodrigo Henrique Araújo da Costa. Luz sobre o fundo escuro: Caravaggio, São Mateus e o Anjo e Amor Vitorioso (1601-1602). Dissertação de mestrado – UFPB/CCHLA, João Pessoa, 2013.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. Lisboa: Presença, 1989.
_________. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1988.
GINZBURG, Carlo. Indagações sobre Piero. Tradução de Luiz Carlos Cappellano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
__________. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história. 2. ed. Tradução de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
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GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
LONGHI, Roberto. Breve mas verídica história da pintura italiana. Tradução de Denise Bottman. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
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PANOFSKY, Erwin. Idea: a evolução do conceito do belo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
__________. Significado nas artes visuais. Tradução de Maria Clara F. Kneese e J. Guinsburg. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
RICOEUR, Paul. Hermenêutica e ideologias. Organização, tradução e apresentação de Hilton Japiassu. Petrópolis: Ed. Vozes, 2008.
________. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. Campinas, SP: Editora UNICAMP, 2007.

SCHAMA, Simon. O poder da arte. Tradução de Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

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