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EDUCAÇÃO ESCOLAR E ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL: ENTRE PERMANÊNCIAS E MUDANÇAS
Maria Dalva da Conceição
Prof. Mnt. URCA

Para analisar e refletir sobre a importância do ensino de história no Brasil, nos dias atuais, é primordial conhecermos a história de sua constituição enquanto matéria e conteúdo escolar, entendendo e percebendo-a também como construção humana, resultado de processos e contextos históricos; e portanto, sua produção e seu ensino estiveram e estão também relacionados a tempos e espaços, e como tal, são condicionados ou influenciados por constantes processos de construção/reconstrução,  reconstituição, formação e reformulação.
Segundo Fonseca (2003), no Brasil, o estabelecimento, a construção e o ensino de uma história oficial se dá a partir da segunda década do século XIX, pós independência , e fundamentada no contexto histórico da necessidade de manter e consolidar a configuração de Estado-nação que o Brasil acabara de adquirir, procurando conferir ao povo desse território uma ideia de unidade, um sentimento de nacionalidade e pertencimento até então inexistentes, dadas as enormes diferenças regionais e conflitos que assolavam o Brasil e ameaçavam a unidade territorial desde o século XVIII.
Neste momento, construir a ideia de unidade nacional, significava definir quais memórias e elementos deveriam fazer parte e ser impressos no sentimento de nacionalidade , o que provocou processos de escolha, seleção de temas e formas de abordagens, bem como a exclusão de diversos elementos que também eram constitutivos da população desse território; dentre os elementos a causarem mais preocupação e a serem silenciados ou apagados nesse processo estavam as contribuições ou presenças negras na história.
O estabelecimento da história enquanto disciplina escolar se deu também em meio a embates políticos e ideológicos a respeito de qual o papel e a função social da educação formal, e sob um panorama de exclusão social e política que se refletiu também nas definições dos objetivos da educação e do ensino história.
O pensamento liberal do século XIX definia o papel da educação no sentido da formação do cidadão produtivo e obediente às leis mesmo quando impedido de exercer direitos políticos. A conformação do individuo à vida civil passaria, assim, pela estruturação de um sistema de educação nacional, controlado pelo Estado e unificado em seus pressupostos pedagógicos, em seus programas e em seus currículos (Fonseca,2003 p.44).
Nesse contexto, a educação foi tida como fator primordial para consolidação de preceitos de civilidade, desenvolvimento e progresso, mas ainda não como obrigação do Estado, nem direito extensivo à toda a população, assim inicialmente a educação foi pensada como algo para às elites, que visava não eliminar, mas manter e justificar as imensas desigualdades sociais existentes no país.
Conforme Fonseca (2003) nos permite afirmar, o Estado sempre foi o centro das definições educacionais e políticas, dos conteúdos e ideais norteadores da educação como um todo, tendo também suas ações sido influenciadas pelos preceitos do cristianismo católico, um legado da forte presença da Igreja Católica no Brasil desde o período colonial, tendo sido inclusive os jesuítas responsáveis pela criação das primeiras escolas, em decorrência disto, a primeira lei educacional brasileira de 1827, dizia que a educação e o ensino deveria ser baseado nos princípios da moral cristã católica.
Portanto, no Brasil a educação escolar e o ensino de história nascem profundamente ligados aos interesses da Igreja católica e do Estado, o que de certa maneira pode ser percebido até o presente, pois embora a atual Constituição apregoe a laicidade do Estado, vê-se que os preceitos do cristianismo católico predominaram e talvez ainda predominem, em grande parte das escolas públicas e privadas do país, o que em si não constituiria problema algum, se isto não representasse a manutenção do preconceito, discriminação e exclusão de outras matrizes religiosas também presentes no nosso país.
Isto é um dos fatores que evidenciam a sobreposição dos elementos culturais de herança europeia, denotando que sempre houve uma preocupação em silenciar os elementos “indesejáveis” da história de formação do povo brasileiro.
Do século XIX até a década de 30 do século XX essas elites colocaram a questão da identidade no centro de suas reflexões sobre a construção da nação, o que as levou a considerar detidamente o problema da mestiçagem, visto na perspectiva mais preocupante, isto é, aquela que envolvia a população afro-brasileira (FONSECA, 2003, p. 46)
Baseada nos interesses do Estado e de seus grupos dirigentes, ao longo de toda a sua história de formação e afirmação enquanto disciplina, a questão da formação de uma identidade nacional hegemônica, ou, unitarista, sempre foi predominante; as definições e delimitações de sujeitos e conteúdos, aos quais ela daria, ou não fala, sempre ocorreu a partir de interesses e de lugares sociais de poder, do Estado, da religião, das elites politicas e econômicas, e dos ideais que esses lugares e postos de poder definiam como o ideal de indivíduo e sociedade que se pretendia formar.
Estes objetivos buscados ao longo século XIX, se mantiveram no inicio do século XX, mesmo após o advento da república, pouca coisa, ou, quase nada mudou quanto a concepção dos objetivos fundamentais da história por parte do Estado.
A partir da chamada Era Vargas (1930- 1945), a constituição passou a reconhecer a educação como dever do Estado, todavia, as possibilidades e a acessibilidade das camadas mais populares a esse direito não eram garantidas, e o modelo e os objetivos de ensino aos quais à história servia eram voltados para o disciplinamento do individuo, às necessidades do momento que o país atravessava, a idealização do cidadão trabalhador e conformado à sua realidade política e social.
As características desse período, perduraram até a década de 1960 e  foram ainda mais aprofundadas a partir do Regime Militar (1964-1985), onde a ideia de uma consciência cívica e de patriotismo estavam profundamente ligadas à uma exaltação patriótica que dispensava qualquer forma de questionamento à ordem e aos governos vigentes.
Nesse sentido, a produção historiográfica brasileira, seu ensino escolar sempre estiverem carregados de intencionalidades político-ideológicas relacionadas a grupos dominantes, e assim coube a história o papel de disciplina fundamentadora ou criadora de sentidos, sentimentos de identificação e pertença, que nunca porém, incluía , dava voz ,ou, espaço na escrita e nos debates, para todos os indivíduos .
Os grupos que sempre definiram, os projetos de identidade, memória coletiva, delimitaram quais memórias, sujeitos e fatos, deveriam ser impressos nas histórias oficiais e nas memórias coletivas, a perspectiva metódica positivista, da história centrada em figuras d lideranças heroicas simbolizadoras da unidade e dos sentimentos que se desejava incutir na população.
Porém, as mudanças políticas nacionais e globais, assim como embates teórico- metodológicos, processados ao longo do século XX também incidiram sobre a educação e seus objetivos, sobre as razões de ser das disciplinas escolares também, assim, muitos fatores tem contribuído para reflexões e mudanças na elaboração, definição de conteúdos e práticas de ensino de história
Na atualidade, sob a orientação do PCNs, que também podem ser encarados como reflexos das mudanças que ocorreram na concepção de educação como um todo, e de contextos de mudanças políticas nacionais e globais, percebemos uma tentativa de reformulação da ideia de identidade nacional, de maneira que ela englobe e inclua elementos que antes eram negligenciados, está posto que o ensino de história deve ser voltado para o exercício pleno da cidadania, para a valorização das diversidades,  e a conformação de uma identidade nacional baseada em um multiculturalismo.
Assim a produção e o ensino de história no Brasil, desde meados do século XX pelo menos, é terreno de intensas disputas ideológicas que talvez hoje sejam mais intensas, pois todas as mudanças que se processaram na historiografia ao longo do século passado, refletiram também nos conteúdos e práticas pedagógicas para o ensino de história.
Mudanças que deram voz e fizeram emergir inúmeros sujeitos antes silenciados e submetidos à falsa ideia de homogeneidade harmônica, que hoje está em declínio, pois os negligenciados ou silenciados estão disputando cada vez mais ativamente, os espaços de fala e registro, que durante tanto tempo lhes foram negados.
O que está evidenciado na luta das populações negras, dos indígenas, das mulheres, dos trabalhadores, para conquistarem e demarcarem espaços, e não mais simplesmente submetidos a leituras que só os incluem de forma passiva, mais lhes negam fala.
 A partir de meados dos anos 70 e por toda a década de 80, assistimos à emergência dos movimentos sociais populares, protagonizados pela mobilização dos trabalhadores, mulheres, negros, índios, homossexuais etc., que, até hoje, reivindicam para si o alcance e o exercício dos direitos de cidadania e a participação politica no processo decisório nacional. Esses movimentos colocam na ordem do dia o interesse pelo “resgate” de sua memória, como instrumento de luta e afirmação de sua identidade étnica e cultural (Oriá,1995,p. 129).
Influenciada pelas mudanças que ocorreram nas formas de pensar e produzir da historiografia ocidental, assim como pelos contextos e as mudanças políticas nacionais, o ensino de história no Brasil sofreu mudanças significativas, mas podemos afirmar que tanto os conteúdos escolares quanto os conhecimentos produzidos na academia, ainda conservam muito de suas bases e interesses iniciais.
Isso podemos constatar, por exemplo, ao analisar o quanto a perspectiva da história factual e centralizada a partir da ação e protagonismos individuais ainda permanece na produção da história dos livros didáticos e no ensino escolar.
E para isto contribuem as práticas de professores em salas de aula , os conteúdos que selecionamos e como lidamos com eles durante a transposição didática, pois são fundamentais para a consolidação dos saberes e memórias coletivas instituídas como valorosas para uma nação, ou para seu questionamento, caso julguemos que as falas e saberes privilegiados pelos órgãos e instituições que sempre os definiram, deixaram e deixam de lado, inúmeras falas, sujeitos e memórias, que não se enquadravam ,ou, não interessavam aos grupos e instituições definidoras do que era e é, valoroso para a sociedade.
Portanto, no Brasil a grande questão ou embate ainda seja o de romper verdadeiramente com as perspectivas e objetivos do ensino de história do século XIX, é necessário de fato consolidar mudanças na produção e nas práticas de ensino de história.
Reformular conteúdos da história do povo brasileiro de modo a ampliar horizontalmente concepções e conhecimentos a respeito da própria história nacional, que não estejam referenciados apenas na perspectiva eurocêntrica, é necessário desconstruir as visões de hegemonia harmônica, de um grupo ou elemento cultural sobre os demais.
Sabendo que o ensino de história sempre foi posto a favor da violência simbólica de construir uma história e uma memória coletiva oficial que apagasse ou colocasse sempre como inferiores contribuições de outros elementos que não o branco europeu.
Podemos considerar que um dos objetivos principais do ensino de história hoje seja superar esses aspectos ainda predominantes, que continuam a excluir sujeitos e temáticas, ainda em consonância com as primeiras definições politico-ideológicas para o ensino de história no Brasil , demarcar mais espaço para a história nacional, para outras matrizes além da europeia, e às identidades étnicas historicamente negligenciadas, vítimas das inúmeras violências simbólicas que as inferiorizaram e inferiorizam.
Com base nisso, concordando com Albuquerque Jr (2012), consideramos que, no Brasil a grande questão ou embate ainda seja o de romper verdadeiramente com as perspectivas e objetivos do ensino de história do século XIX, é necessário de fato incluir na história e na memória coletiva do povo brasileiro as histórias locais frente ao eurocentrismo e desconstruir as visões de hegemonia harmônica, de um grupo ou elemento cultural sobre os demais.
A história tem assim, um importante papel a exercer nesse mundo onde a alteridade, a multiplicidade e a diversidade social e cultural exigem um preparo subjetivo para a convivência com o diferente, sem o que temos e teremos crescentes manifestações de intolerância, xenofobia, até mesmo a revivência de práticas e discursos eugenistas e segregacionistas.( Albuquerque Jr,2012, p.33)
Portanto podemos eleger e considerar que um dos objetivos principais do ensino de história hoje seja superar esses aspectos ainda predominantes, que continuam a excluir sujeitos e temáticas, ainda em consonância com as primeiras definições politico-ideológicas para o ensino de história no Brasil , demarcar mais espaço de fala às identidades étnicas historicamente negligenciadas e vítimas das inúmeras violências simbólicas que as inferiorizaram.

Referências bibliográficas
ALBUQUERQUE JR. Durval Muniz. Fazer defeitos nas memórias: para que servem o ensino e a escrita da história? IN: GONÇALVES, Márcia Almeida de .... [et all] (orgs.). Qual o Valor da História Hoje? Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
CEZAR, Temístocles. “O sentido de ensinar história nos regimes antigos e modernos de historicidade”. In: MAGALHÃES, Marcelo; ROCHA, Helenice. Ensino de História: usos do passado, memória e mídia. Rio de Janeiro: FGV, 2014.
CHERVEL, André. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. IN: www2.pucpr.br/reol/index.php/dialogo?dd99=pdf&dd1=12619. Acesso: 25/08/2016.
CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, n. 2, p. 177-229, 1990.
FONSECA, Thaís Nívia de Lima e. História e Ensino de História. Belo Horizonte, Autêntica, 2003.
FONSECA, Selva Guimarães. Didática e Prática de Ensino de História. Capítulo 1.

ORIÁ, Ricardo. Memória e Ensino de História. In: História e Ensino: Revista do Laboratório de Ensino de História da Universidade Estadual de Londrina.Vol.I, 1995.

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