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Letícia Mistura; Pedro Alcides

UM MANIFESTO SOBRE A PERTINÊNCIA E PERMANÊNCIA DA HISTÓRIA ESCOLAR
Letícia Mistura
Mnt. Educação UPF
Pedro Alcides Trindade de Mello
Prof. Esp. Ciências Sociais UPF

O ensino de História que conhecemos, no Brasil, possui uma trajetória de existência complexa. A história escolar, de todas as disciplinas que historicamente compuseram o currículo dedicado à escolarização de crianças e jovens, sempre esteve associada a uma especificidade de tom, que acompanhava a narrativa – diferente da disciplina histórica de pretensões científicas – destinada ao ensino. Este tom legava intencionalidade moral ao ensino, que era perseguida por meio tanto da narrativa histórica formulada como objeto de estudo quanto dos métodos utilizados para ensiná-la. Esta narrativa, construída de modo exemplar, auferia a construção, no contexto de legitimação dos Estados Nacionais, de uma identificação afetiva e restrita e de identidades largamente coletivas, sobre o que pertencia ou não ao nosso.
Este modelo, que consagrou cisões identitárias – em níveis locais, regionais, nacionais, inter e transnacionais -, diferenças irreconciliáveis, opressões e negações ao direito de grupos sociais de narrar e incluir-se na narrativa oficial, além de inúmeras outras mazelas, opera até hoje em reminiscências: a discussão sobre história escolar está enlaçada inegável e intimamente às esferas políticas. Esta permanência, é possível avaliar, relaciona-se a dois fenômenos: a tensão entre as especificidades da história escolar e da disciplina histórica científica e dos incinerados debates, que se alastram em todos as esferas sociais, pautados pela problematização e decomposição daquele modelo histórico-didático-pedagógico. Visualizamos, no cenário atual, uma interessante disputa de poder dos mais variados grupos em torno de ambas as discussões (LAVILLE, 1999) – o que almejamos neste pequeno texto é afirmarmos, embora rodeados de vozes discursantes – em sua maioria, que nos – como profissionais do ensino de história - interpelam, nos acusam e compõem conosco uma complicada cacofonia – e em minoria, que nos desafiam e que se juntam em coro, a pertinência e a permanência do ensino de história e da história escolar nas escolares brasileiras.
A história escolar, dedicada ao ensino de crianças e jovens, conviveu e convive em tensões com a história disciplinar, científica. Suas diferenças residem além de seus diferentes metiês: é preciso que o interesse que as mantém em convergência – o conhecimento produzido a partir da experiência do passado humano também seja base para sua convivência, inclusão e diferenciação. A história escolar precisa entender e conferir legitimidade aos procedimentos metodológicos da escrita da história científica/acadêmica, embora estes não façam parte orgânica da moldura da história escolar. A história escolar inclui a acadêmica, já que é desta que provém os conceitos, os consensos e congregações de significados da narrativa que persegue, ainda que não faça uso destes de forma integral. A história escolar não possui a mesma fundação da história acadêmica; ela convive com sua tradição pedagógica e com a cultura histórica (RÜSEN, 1994) de toda a comunidade escolar, precisando mobilizar diversos “saberes”, que a compõem e derivam de si – é nestes termos que reside a sua especificidade.
 Se divergíamos da função exemplar da história escolar – a produção identitária e de representações coletivas -, para que serviria estudar história? É possível a construção de uma narrativa, de igual adesão, sem que sejam feitas diferenças venenosas entre o que é “nosso” e o que é “dos outros”? O que a história escolar deve ensinar, senão a narrativa do passado, e quem a deve compor? Como conciliar a discussão sobre um ensino que promove reações dos mais diversos segmentos sociais – afinal, a história não é de todos e sobre todos e cria legítimas disputas de poder? Que história deve ser contada?
É claro que acreditamos ser possível a defesa da história escolar – e de uma história escolar que não negue ou dissolva a forma mais tradicional de representação do passado e de exposição de seu estudo, a narrativa. Entretanto, também acreditamos que a resposta para a permanência da história escolar no currículo da educação básica brasileira não resida no tipo, na forma ou na veiculação de narrativas sobre o passado. Reside, sim, em uma arquitetura didático-pedagógica que se utilize de princípios que excedam a construção de uma narrativa (afinal, a história não énarrativa), por meio da aprendizagem, pelos estudantes, de formas pelas quais ler, analisar e construir interpretações sobre narrativas – divergentes, contrastantes, paradoxais. Defendemos a aprendizagem história como terreno de desenvolvimento do pensamento histórico – que, é claro, não se desenvolve em vácuos de conteúdo -, a partir do desenvolvimento de habilidades de significação, do trabalho com noções de epistemologia e evidência, transição, continuidade e mudança,  progresso e declínio, agência histórica e a partir da tomada de consciência de perspectiva histórica (ou empatia histórica) e de julgamentos morais.
Não negamos o desafio patente de orientação temporal e espacial, já que os julgamos essenciais. No entanto, acreditamos que a história escolar, justamente por sua característica de saber composto, deve ser a que ensina a lidar com esse saber, um saber que está encerrado em cada estudante e em cada professor. Acreditamos na tarefa hercúlea do professor de história, que necessita debater-se, para além de todas as tensões de suas condições reais de trabalho, com a identidade de sua própria disciplina de ensino, que tem sido tão maleável nas mãos dos discursos sociais, em todos os seus patamares de existência.
Acreditamos que o ensino de história e a história escolar podem ajudar a construir a nação, não sob pena de padecerem sob fortes amarras morais, mas por meio da colaboração na formação de cidadãos capazes de “enxergar” a história, em si mesmos e nas narrativas que fazem parte da constituição da história da humanidade e tomar destas narrativas não apenas as representações que necessita para que se sinta alguém - e que o faça em um terreno positivamente conflituoso, em que a diferença seja chave de compreensão – mas também os elementos essenciais pelos quais a humanidade têm buscado sua própria permanência, a democracia, a igualdade, a paz, e formas pelas quais os seres humanos construíram as respostas aos seus problemas, em seus determinados e respectivos tempos. Acreditamos num ensino de história em que o professor reconheça em sua ação a posição de sensibilidade aos contextos e assuma combatividade frente à identidade de sua disciplina escolar, afirmando-se como uma referência de interpretação das posições, representações e interações sociais. Acreditamos que estudantes podem engajar-se em seu meio social e reconhecer, em si, agentes de comunicação, interação e transformação – e não agentes de agressão – frente a outras e diferenças experiências de passado e presente. Por que ensinar história hoje? Porque acreditamos em um ensino de história que favoreça a experiência do passado como amarra de sobrevivência ao presente, e que pincele um futuro esperançoso.

Referências
LAVILLE,  Christian. A guerra das narrativas: debates e ilusões em torno do ensino de História. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 19, n. 38, p. 125-138, 1999.
RÜSEN, Jörn. ¿Qué es la cultura histórica ?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la historia. In K. Füssmann, H. T. Grütter, & J. Rüsen (Eds.), Historische Faszination. Geschichtskultur heute. Weimar, Böhlau, 1994, p. 3-26 (versão traduzida para o espanhol por F. Sánchez Costa e Ib Schumacher).


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